A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Outubro a 1 de Novembro de 2009
“António Sérgio – A Obra e o Homem” de Joaquim Montezuma de Carvalho (Arcádia, 1979) é um livro que merece uma atenção especial, uma vez que o autor procede nele a uma leitura da obra do escritor dos “Ensaios” nos vários domínios em que esta se desenvolve, o que nos permite ter um roteiro introdutório relativamente a uma produção consabidamente heterogénea e multifacetada, que é apresentada com coerência e de um modo acessível e panorâmico. Cabe, aliás, fazer uma homenagem à personalidade de Joaquim Montezuma de Carvalho (1928-2008), cujo falecimento passou injustamente despercebido, laboriosíssimo e incansável homem de cultura, cuja obra dispersa é de grande interesse e valor. Vivendo em Angola e Moçambique desde os anos 50, regressou a Portugal em 1976, onde exerceu advocacia. Filho do Professor Joaquim de Carvalho, organizou, ainda estudante, uma homenagem a Teixeira de Pascoaes, publicou o Epistolário Ibérico de Pascoaes e Unamuno, organizou textos de seu pai, deu à estampa em Angola “Panorama das Literaturas das Américas de 1900 à actualidade” e produziu intensa colaboração na imprensa latino-americana, com grande reconhecimento público, mas incompreensível desatenção em Portugal.
António Sérgio por João Abel Manta
A OBRA E O HOMEM
Montezuma de Carvalho analisa quatro domínios fundamentais da produção teórica de António Sérgio – do filósofo, do historiador, do pedagogo activo e do doutrinador do cooperativismo. E verificamos, com facilidade, que há uma inequívoca complementaridade entre estes diversos capítulos, ficando claro que o ensaísta foi sempre um “homem político” e um “pedagogo activo”. Tudo o que lemos do seu pensamento decorre desta dupla assunção. Aliás, o homem político decorreu, naturalmente, do cidadão e do pensador. Se há no século XX português um exemplo de intelectual comprometido e empenhado na coisa pública, em coerência com o seu pensamento, apesar de todas as adversidades e nunca numa perspectiva de exercício imediato de poder, esse é o de António Sérgio de Sousa (1883-1969). E se digo sem uma perspectiva imediata do poder, é porque quer no final da Primeira República quer durante a oposição a Salazar, Sérgio manteve-se fiel àquilo que Julien Benda tratou em “La Trahison des Clercs” e que o ensaísta traduziu deste modo: “Está bem, a meu ver, que os intelectuais se interessem pela vida pública: mas devem fazê-lo todavia para tentarem submeter a acção política a um pensamento universal e des-subjectivado, a um ideal de racionalidade o mais pura possível – e não para formularem justificações sofísticas das paixões de preconceitos de qualquer facção” (como afirmou em entrevista à “Vértice”, em Junho de 1956). O fundamental estaria, pois, na procura de um princípio universal, um ideal de racionalidade (ou não fora ele um idealista), demarcado da lógica oportunista do imediato. Tanto quando foi Ministro da Instrução Pública com Álvaro de Castro (1923-1924), como quando, no final da vida, animou a candidatura do General Delgado, encontramos o mesmo desejo – de realizar um ideal de democracia de cidadãos livres e unidos por um desígnio de cooperação.
UM PERCURSO INTELECTUAL
A vida de António Sérgio, desde Damão, onde nasceu, passando por Angola, pela frequência do Colégio Militar, pela fugaz carreira na Armada, pelo pedido de licença ilimitada, sob o efeito brutal do suicídio do seu grande amigo Frederico Pinheiro Chagas, é marcada por uma vocação literária. A influência de Antero de Quental é sentida desde muito cedo, logo em 1909. Sérgio passa por Londres e pelo Rio Janeiro no exercício da actividade editorial. Aproxima-se da Renascença Portuguesa, relaciona-se com Raul Proença e Jaime Cortesão. Estuda pedagogia, em Genebra, com sua mulher, Luísa. Em 1914, afasta-se da “Renascença”, demarcando-se do saudosismo de Pascoaes e defendendo uma aproximação em relação à Europa. Afirma-se como persistente polemista (gastando tantas vezes demasiadas energias nesse digladiar). A seguir à queda de Sidónio Pais (1918), depois de ter dirigido a revista “Pela Grei”, onde procurou lançar ideias para uma “regeneração republicana”, baseada na educação, volta ao Brasil. Raul Proença desafia-o para voltar a Portugal. E assim acontece, em 1922, quando já está lançada a revista “Seara Nova”. Sérgio liga-se aos grupos da Biblioteca Nacional. Torna-se, com Proença e Cortesão, um dos esteios do novo movimento, entrando para o governo de Álvaro de Castro, onde exerceu funções durante três meses. Desde os textos sobre a “Educação Cívica” (1915) e continuando na persistente tentativa de levar a República moderna a executar uma política educativa eficaz (revendo os métodos pedagógicos, articulando ensino e vida económica, incentivando o sentido crítico do conhecimento da história, organizando a República escolar, integrando internacionalmente o ensino superior e a investigação científica), António Sérgio investe sobretudo nas transformações educativas.
HISTÓRIA, VONTADE E PEDAGOGIA
“Poucos países há, certamente, em cuja história seja tão sensível, de ponta a ponta, o influxo do facto económico, como este nosso: poucos há também cuja história económica fosse tão desprezada; e será acaso dos maiores obstáculos ao ressurgimento da nossa pátria a falta geral de conhecimentos sólidos das condições económicas em que se evolucionou” (1924, in “Antologia dos Economistas Portugueses”). Afinal, Sérgio segue o ensino de Antero de Quental: “A moralidade colectiva é um facto, em grande parte, de ordem económica, ainda que esta afirmação pareça paradoxal”. Porquê? Como diz em 1924 a Jaime Magalhães de Lima: “o exemplo do santo é adjuvante; o de homem de carácter, necessário; nenhum deles é o factor suficiente da prosperidade social. Só frutificam, ambos eles, pela acção educativa da formação particularista”. Por isso insistirá em que: “a nossa futura pedagogia deverá ser, essencialmente, uma pedagogia de trabalho e da organização social do trabalho”. Economia e dignidade humana são faces da mesma moeda. Não se entende a satisfação das necessidades sem a consideração da moralidade e vice-versa, ideias e coisas relacionam-se intimamente. Não se pense, pois, que há compartimentos estanques na reflexão de António Sérgio. Há, sim, uma ligação íntima entre a interpretação histórica e económica, a concepção filosófica e a intervenção cívica e política. Tudo se articula. Afinal, para o ensaísta “a pátria é um ir sendo pela vontade e pela consciência”. Alexandre Herculano e a melhor reflexão historiográfica oitocentista estão bem presentes, prolongando-se para a intervenção transformadora. E vem à baila a ideia de “fixação”: “adoptei a palavra fixação para designar o investimento dos lucros do transporte em fainas produtoras nos territórios nacionais em vez de deixarmos que os ditos lucros passassem todos a gente estranha para pagamento do muito que nós importávamos. Se a ideia de política de fixação não supusesse a existência de transporte, chamar-lhe-ia política de produção, e não política de fixação (a ideia de fixação – ao que me parece evidente – pressupõe a de um algo que se está movendo, que está sendo transportado)”. Mas, para António Sérgio é preciso saber quem é o sujeito da História, enquanto ser livre, actuante e racional. Daí a noção do “terceiro homem” – “o homem do libertarismo auto-disciplinado e reformador. É o cooperativista, o Homem possuído da ideia da sociedade justa (…) é o Homem da autoridade interna subjugado ao império do racional, sol que doura e ilumina a sua inteligências, vontade e sentimento”. E, ao reler reflexões como esta, Joaquim Montezuma de Carvalho remata magistralmente: “Sérgio realiza entre nós a apoteose de unidade. Ética, Estética e Ciência são a unidade na diversidade. Depois dos gregos, a dispersão, o homem unilateral. Sérgio prolonga na modernidade o pitagorismo dos versos de ouro: sem unidade não há orientação, sem auto-domesticação não atingimos a imortalidade dos deuses. Sérgio é helénico por excelência. É o homem integral”.
Guilherme d’Oliveira Martins
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