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(XI) A Arrábida e Frei Agostinho da Cruz

Andando de norte para sul e de sul para norte, fixamo-nos hoje no centro, na Arrábida, santuário único do Mediterrâneo no Atlântico. E recordo Manuel Viegas Guerreiro a lembrar uma antiga excursão de estudiosos à Arrábida com Orlando Ribeiro (o grande revelador dos maiores enigmas desse lugar mágico), no tempo em que se dedicava intensamente ao estudo da região. «É com saudade que evoco (…) a travessia da serra da Arrábida, de Azeitão ao Portinho, com estação obrigatória no convento, quando Orlando Ribeiro preparava a sua tese de doutoramento. De sacola às costas e martelo em punho, aqui quebrando uma pedra, acolá examinando um seixo, lá íamos serra acima, falando de tudo e até do Materialismo Histórico que já nessa época era moda defender e contestar, na Faculdade. Depois, diante do santo de boca encadeada e cilícios remissivos, tempo de meditação». Orlando Ribeiro é claríssimo: «Por mim direi que não conheço em Portugal nenhum outro lugar onde, em tão pequeno espaço, se possam contemplar tão variados aspetos naturais. Esta riqueza de paisagens se por um lado dificulta muito o estudo geográfico da região, por outro compensa o investigador com a diversidade de ensinamentos que lhe proporciona.»

«É impressionante ver (continua Orlando), do limite do planalto, a mais de 100 metros de altitude, o mar impetuoso quebrar em franjas de espuma na base da arriba quase vertical. As rochas desta zona, calcários e dolomias compactas, duras e resistentes, têm a superfície coberta de rugosidades em todos os sentidos». A exposição a sul permite que o Mediterrâneo aqui se reproduza, como se estivéssemos na Grécia ou no Meio-dia italiano. É verdade que a água do Portinho é mais fria do que a da Falésia algarvia ou do que a da Rocha, mas a magia é semelhante, no cheiro inebriante do “maquis”, graças ao carrasco, aderno, zambujeiro, alfarrobeira, aroeira, urze, medronheiro, rosmaninho, alecrim, tomilho e alfazema… E o geógrafo explicava, virado para o mar no Conventinho, que a razão principal da distribuição da população na Arrábida esteve «no aproveitamento das águas (pesca, salinas, comunicações) e na natureza do solo arável» – as oliveiras de Azeitão, as vinhas de José Maria da Fonseca e da Periquita, os pastores e os rebanhos, vindos da Serra da Estrela, que criaram um novo queijo, com a mesma técnica mas um sabor totalmente outro, pela diferença dos terrenos e pastagens. E a região geográfica é um extraordinário somatório de características físicas e humanas comuns, específicas de um determinado espaço singularmente belo. A «pequena região natural» possui uma «individualidade geográfica» inequívoca que o estudioso demonstra com sensibilidade e talento. A Arrábida é «única pela estrutura entre as recentes montanhas portuguesas, polimórfica no relevo, no clima, na vegetação, na forma dos agrupamentos humanos.» A Arrábida é uma «nesga mediterrânica entre terras e águas atlânticas» que pode ser descoberta ou redescoberta através do extraordinário esboço geográfico de Orlando Ribeiro.

Em terra de poetas (de Sebastião da Gama a Pedro Tamen e António Osório) ninguém melhor do que Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), irmão de Diogo Bernardes, que viveu a vida entre Sintra e a Arrábida, para nos guiar nesta viagem a um domínio que se apresenta como antecâmara da eternidade.

«No meio desta serra, onde se cria / Aquela saudade d’alma pura, / Que no duro penedo acha brandura, / Ardente fogo dentro n’água fria: / Ouço do passarinho a melodia, / Vejo vestir o bosque de verdura, / Variar-se no céu outra pintura, / Que em vários sentimentos me varia. / Pasmando de quam mal se gasta a vida / De quem na terra quer subir ao céu / Pois caminhar em fim ninguém duvida. / Menos da vida estreita que escolheu, / Dos seus mais escolhidos mais seguida, / Christo Jesu, que numa Cruz morreu».

«Dos solitários bosques a verdura, / Nas duras penedias sustentada, / N’esta serra, do mar largo cercada, / Me move a contemplar mais fermosura. / Que tem quem tem na terra mor ventura, / Nos mais altos estados arriscada, / Se não tem a vontade registada / Nas mãos do Criador da criatura? / A folha que no bosque verde estava, / Em breve espaço cai, perdida a flor, / Que tantas esperanças sustentava. / Por isso considere o pecador, / Se quando na pintura se enlevava / Não se enlevava mais no seu pintor.

GOM

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