FASCINADOS E RESSENTIDOS
Portugal precisaria de
ser outro, mais consonante com o continente civilizado, menos condenado à
periferia e à distância. Fascinados ou ressentidos, a verdade é que
precisaríamos da Europa – “com a mesma ironia calma com que Caeiro se
vangloriava de oferecer o universo ao universo, nós, primeiros exilados
da Europa e seus medianeiros da universalidade com a sua marca
indelével, bem podemos trazer a nossa Europa à Europa. E dessa maneira
reconciliarmo-nos, enfim, connosco próprios”. A receção do Realismo e do
Naturalismo constituiu um momento fundamental em que uma geração
intelectual procurou romper com o fatalismo do atraso e da mediocridade.
Para tanto, haveria que seguir as tendências da modernidade, mesmo que
isso representasse o assumir do escândalo da rutura. Mas se essa
diferenciação era mister de gente culta, importava comparar, até para
tentar perceber o que deveria fazer-se para romper com a inércia da
repetição conformista ou dos nossos males que tanto irritavam os
viajantes estrangeiros. Em maio de 1885, Oliveira Martins, no primeiro
número de “A Província”, órgão do movimento da “Vida Nova”, afirma:
“Esta é a vida nova que surge dentro do nosso partido, não como um
renegar do passado, mas sim como uma afirmação positiva das suas
tradições mais nobres e invariavelmente defendidas”. E nesse texto,
invoca a referência europeia: “Toda a Europa se acha numa época de
reação vitoriosa contra a anarquia económica; em toda ela predomina o
pensamento da nacionalização do trabalho e da proteção dos
trabalhadores”. Trata-se, assim, da invocação de um projeto claramente
socializante, centrado na criação económica e na valorização do trabalho
e dos trabalhadores. A Europa e a comparação com a Europa nunca são
indiferentes à Geração de 70. Mas não se trata da Europa do
livre-cambismo e das injustiças, mas do continente das ideias novas, da
liberdade e da igualdade. Por outro lado, há sempre uma preocupação com o
tentar perceber por que razão seremos menos europeus.
SEMPRE A EUROPA…
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a ler-se Eça de Queiroz, e veja-se como o tema europeu é quase
obsessivo – o Primo Basílio vem de Bordéus, Maria Eduarda e Dâmaso
Salcede também viajam num paquete vindo de Bordéus, “Os Maias” não se
podem compreender sem a referência europeia, Alencar no célebre jantar
do Hotel Central fala da “democracia humanitária de 1848” e diz querer
“uma república governada por génios, a fraternização dos povos, os
Estados Unidos da Europa” e em “A Cidade e as Serras” o que temos é um
diálogo sui generis entre Portugal e a Europa. De qualquer
modo, há sempre um confronto entre a Europa aceite como um horizonte
referencial e a Europa considerada como desafio contra o fatalismo. O
Alencar que fala dos Estados Unidos da Europa é o romântico,
influenciado pelos engenheiros de Saint-Simon de que Fontes Pereira de
Melo é o principal dos émulos. E o sentido crítico que Eça introduz a
propósito de Tomás de Alencar aponta o dedo à inconsequência do utopismo
romântico, contra o qual se ergue o naturalismo de Ega. A mesma crítica
está, aliás, simbolizada no conde de Gouvarinho, representante do
fatalismo e da mediocridade aceite. Quando lhe é posta a possibilidade
de sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros: “- essa nunca! –
prosseguiu ele muito compenetrado. – Para se poder falar alto na Europa,
como ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por trás um exército
de duzentos mil homens e uma esquadra de torpedos. Nós infelizmente,
somos fracos… E eu, para papéis subalternos, para que venha um Bismarck,
um Gladstone, dizer-me ‘há de ser assim’, não estou!…”. Como é
sabido, Gouvarinho não foi para os Estrangeiros, mas para a Marinha e
Ultramar, e então tomou a medida fundamental de criar um teatro normal
em Luanda. Ainda em “Os Maias”, Carlos, no final do romance, cético e
distante dos entusiasmos reformadores de dez anos antes, vindo da
Europa, descreve o viver bem: “Passeio a cavalo no Bois; almoço no
Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clube com os
jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie
Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros às lebres no
Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela
ciência, o bricabraque e uma pouca de blague. (…) Nada mais inofensivo,
mais nulo, e mais agradável”. Eis o retrato de uma decadência
perigosamente atrativa. E Carlos da Maia vê Portugal como uma realidade
dividida: entre o dever ser civilizado e europeu e o peso do atraso e da
sociedade antiga. De um lado, a “gente feísssima, encardida, molenga…”;
de outro os sinais de imitação do que vem de fora – a Avenida, o
obelisco dos Restauradores, a moda das botas aguçadas na ponta… A Europa
aparece, assim, com um sentido nitidamente ambivalente – ora como
referência externa que se imita sem consequência séria, ora como desafio
transformador que não esqueça as nossas características próprias.
O CASO DA CIDADE E AS SERRAS
O
caso de “A Cidade e as Serras” é bem ilustrativo. Jacinto está cansado
da civilização e vem para as serras, não para a capital. Mas sabemos
que, de certo modo, a insatisfação permanece. É verdade que Jacinto
assume a clássica “aurea mediocritas”, que Gonçalo Mendes Ramires sonha
com o Portugal em África, que Fradique Mendes entroniza a Quinta de
Refaldes e outras deambulações no país genuíno – mas isso não significa a
recusa queiroziana da referência europeia, antes representa o assumir
de um mal-estar moderno europeu, simbolista. É, de algum modo, por
influência da Europa que a crítica do excesso de civilização se faz. E,
se bem virmos o que está em causa, não estamos perante um apelo
isolacionista, mas um cosmopolitismo, que se centra no horizonte
europeu. Em suma, o que está em causa é a recusa da condenação ao
atraso, o apelo à vontade, às diferenças e à abertura de espírito e de
fronteiras. Entre o fascínio e o ressentimento, sobretudo num tempo em
que a história europeia prepara um século de incerteza máxima, e em que
Portugal sofre uma crise muito profunda de credibilidade e de vontade, a
Geração de Setenta sentiu no íntimo de si o peso de todas as
contradições. A referência europeia é, no entanto, permanente e
marcante, mas não pode ser superficial e mimética. A Europa de Alencar é
aquela de que foge Jacinto. Ao invés do tédio que enfastia Jacinto, a
Geração de Setenta tem no horizonte uma “sociedade outra” (na linha de
Henriques Nogueira e de Lopes de Mendonça, influenciados pela “Primavera
dos Povos” de 1848). Daí que o ceticismo de Carlos da Maia e o sentido
crítico de João da Ega recusem a claustrofobia do país isolado e só. O
“europeísmo” que a Geração assume é sempre o da abertura e da
emancipação, não o da burguesia instalada e do bem-estar que entedia
Carlos da Maia. “Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim
nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada” –
continua bem presente – na perspetiva de “adquirir a consciência dos
factos que nos rodeiam, na Europa”.
Guilherme d’Oliveira Martins