A MAGIA DA ILUSTRAÇÃO
A importância da ilustração na imprensa escrita é algo que merece uma atenção especial. E se falamos do tema no JL, temos de lembrar como João Abel Manta marcou e marca hoje a história desta casa. Ainda há pouco a capa do JL, que invocava José Cardoso Pires, no momento da publicação da sua biografia, tinha bem presente essa marca de um artista maior das nossas artes plásticas. Essa lembrança, ligada à força essencial da ilustração, merece referência especial, quando há dias nos deixou um grande ilustrador como Vasco de Castro (1935-2021), com uma obra multifacetada e um traço inconfundível, marcantes quer no comentário político e social, quer na compreensão da cultura contemporânea. A galeria das obras de Vasco permite-nos seguirmos a história portuguesa recente numa perspetiva de horizontes abertos, segundo uma estética original, que se liga às melhores tendências modernas do cartoon. Nascido em Ferreira do Zêzere, em virtude da colocação de sua mãe como professora primária, filho do poeta transmontano de Vila Real Afonso de Castro, frequentou o curso de Direito na Universidade de Lisboa, tendo feito parte de uma direção da Associação Académica, com participação ativa nas lutas estudantis. O compromisso político esteve sempre nas suas preocupações e combates, desde o apoio à candidatura de Delgado até à participação nas tertúlias surrealistas do Café Gelo. A boémia e a política marcaram a sua vida, atento ao mundo e ao tempo. As primeiras colaborações na imprensa portuguesa ocorreram a partir de 1954 no “Diário Ilustrado”, “Diário de Lisboa”, “República” e “Parada da Paródia”. Contudo, a situação política e a guerra levam-no para o exílio em França. Tendo vivido em Paris desde o início dos anos sessenta até 1974, a qualidade da sua produção artística e o militantismo social e político desde cedo se evidenciaram, tendo colaborado na mais influente imprensa francesa, “Le Monde”, “Le Figaro”, “France-Observateur” e “L’Humanité”, o que, desde logo, representou o reconhecimento da qualidade da sua obra. Primeiro assina “Tinho”, de Agostinho, seu primeiro nome, e depois, de modo inconfundível, como “Vasco”.
MILITANTE ATIVO
É militante ativo em maio de 1968: “a prática exata da alegria de viver, porque estamos a ser úteis para qualquer coisa que está prenhe de futuro”. Fundou o semanário underground “lx” (1969), logo proibido, e a editora “Champ du Possible” (1973). Em 1970 e 1972 teve participação nas Bienais de Desenho de Humor de Montreal. Com o escritor espanhol Xavier Domingo colaborou em Bandas Desenhadas sobre Hemingway, André Breton e François Mauriac. De regresso a Portugal, após a revolução, fixa-se em Lisboa e colabora na imprensa, em “O Jornal”, “JL”, “Diário de Notícias” “Sempre Fixe”, “República”, “Diário de Lisboa”, “Opção” com textos e desenhos, tendo sido um dos fundadores do diário “Página Um”. Entre as obras publicadas por Vasco de Castro contam-se Montparnasse, mon village (1985), Fotomaton (1986) e Montparnasse até ao esgotamento das horas (2008). No recente livro de homenagem a Mário Mesquita, recordava como o então jovem diretor do “DN” foi decisivo para a escrita das crónicas parisienses. E recordava um encontro com François Mitterrand, “que via frequentemente nesses anos 72-73, no semanário socialista ‘L’Unité’, onde ele escrevia e eu desenhava. Aconteceu numa festa comício próxima de Lyon, onde eu expunha desenhos, e Mitterrand fez um discurso de campanha. Acabámos por nos restaurar durante mais de duas horas, com garrafas de Macom e saucisson local e descontraída conversa; Mitterrand era um sedutor e um ‘homme du monde’”. E dessa história nasceria a ideia de uma série de artigos de memórias aos domingos.
O volume sobre Leal da Câmara (1996) constitui uma importante invocação de uma referência fundamental na história da caricatura em Portugal – na tradição muito rica vinda de Rafael Bordalo Pinheiro. Merece ainda referência o notável conjunto de obras sobre Fernando Pessoa exposto em 2012 na Casa do poeta. Em “Levante-se o Réu”, crónicas do quotidiano dos tribunais de Rui Cardoso Martins, publicadas no “Público”, pudemos contar com impressivas ilustrações que documentam o inesperado da vida, onde o trágico e o irónico tantas vezes se encontram. A presença nas páginas do “Público” é, aliás, significativa. Desde 1992 era sócio correspondente da Academia Nacional de Belas-Artes. Segundo João Alpuim Botelho, diretor do Museu Bordalo Pinheiro, que teve a iniciativa de organizar a exposição antológica “Vasco Século XXI” (2019): “Vasco é um dos grandes da caricatura e do cartoon. O claro escuro, feito de manchas e pingos, com que define as suas personagens, cria um estilo absolutamente original na caricatura portuguesa, que cruza a pintura com o desenho em efeitos insinuantes, que constantemente provocam o nosso olhar”.
OBRA INCONFUNDÍVEL
De facto, a obra de Vasco de Castro é inconfundível, levando-nos tantas vezes até próximo de Stuart de Carvalhais, apesar da distância e das evidentes diferenças. Pode dizer-se que se há autor contemporâneo português que deixou a sua marca inconfundível no panorama político e cultural, com inconformismo e um notável sentido do picaresco foi sem dúvida Vasco. Sendo o panorama português do cartoon atual extremamente rico, onde encontramos, numa referência não sistemática e incompleta, António Moreira Antunes, André Carrilho, Cristina Sampaio, Jorge Colombo, José Carlos Fernandes, João Fazenda, Luís Afonso, Nuno Saraiva, José Bandeira, além dos saudosos Augusto Cid, Sam ou Zé Manel, a verdade é que Vasco, como desenhador e escritor, é um exemplo marcante que deve ser lembrado e estudado… Basta dizer que não será possível fazer a história da cultura portuguesa contemporânea sem considerar o modo como o cartoonista viu, com olhar crítico, escritores, pensadores, artistas, músicos… Lembrando-nos de como Rafael Bordalo Pinheiro foi importante na segunda metade do século XIX no exercício da liberdade de imprensa, no debate de ideias e no pluralismo crítico, é oportuno dizer que o cartoon e a caricatura são meios essenciais para a formação de uma opinião pública madura e construtiva. Daí a importância da ilustração e da ligação entre texto e imagem, entre análise e ironia. Um dos modos de contrariar a falta de qualidade e o primado do imediatismo e da ilusão está no recurso à inteligência crítica. Disso não tenhamos dúvidas… Eis por que razão o lugar de Vasco de Castro é central quando falamos da história recente do jornalismo e da comunicação social.
Guilherme d’Oliveira Martins
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