Conta-se que o velho Jorge de Albuquerque Coelho, vindo de Pernambuco, de idade muito avançada, se sentava em frente ao mar para contar a sua história: “Lá vem a nau Catrineta, que tem muito que contar. Ouvi, agora, senhores, uma história de pasmar…”. Segundo Almeida Garrett, que recolheu o romance popular, A Nau Catrineta baseia-se no Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do Brasil, no ano de 1565, relatado na “História Trágico-Marítima”. Refere-se a lenda à nau “Santo António”, saída de Pernambuco com destino a Lisboa, levando a bordo o filho do fundador do Recife. Pouco depois de deixarem terra, avistaram um navio corsário francês, que pilhava as naus naquelas paragens. A abordagem dos piratas foi eficaz e a nau foi saqueada de todos os seus haveres e deixada à deriva. Os tripulantes foram morrendo de sede e de escorbuto e os que sobreviviam sabiam-se condenados (“já não tinham que comer / já não tinham que manjar”). O desespero apoderou-se dos marinheiros (“deitaram sortes à ventura / qual se havia de matar”; “logo foi cair a sorte / no capitão-general”). Os ânimos estavam muito exaltados (“vejo sete espadas nuas / que estão para te matar”). E Jorge de Albuquerque Coelho levantou-se, aconselhando calma e apelando à dignidade de homens. Os tripulantes serenaram, enquanto a nau continuava à deriva. Por fim, foram avistadas areias de Portugal (“já vejo terras de Espanha / areias de Portugal. / Mais enxergo três meninas / debaixo de um laranjal; / uma sentada a coser / outra na roca a fiar, / a mais formosa delas/ está no meio a chorar”). Mas eis que o demónio se alevanta – “Capitão, quero a tua alma / para comigo levar”. Nem filha, nem corcel, nem Catrineta – “Que queres tu meu gageiro / Que alvíssaras te hei de dar?”. “Capitão quero a tua alma / para comigo levar”. E responde o comandante “Renego de ti demónio / Que me estavas a tentar / A minha alma é só de Deus, / O corpo dou eu ao mar”. E desenha-se o epílogo: “Tomou-o um anjo nos braços / Não no deixou afogar / Deu um estouro o demónio / Acalmaram vento e mar”. “E à noute a Nau Catrineta / estava em terra a varar”… Os elementos do poema permitem identificar, assim, a nossa alma – e as “areias de Portugal” constituem o que nos caracteriza, de modo que o mar é em simultâneo fronteira e horizonte, chegada e partida, lírica e tragédia – e assim razão de ser da persistência da independência do território e da pátria.
GOM