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CULTURA COMO VIDA

Raul Solnado foi, com o seu humor inteligente e moderno, além do mais, um benemérito da língua portuguesa e das culturas da língua portuguesa.

 


RAUL SOLNADO: CULTURA COMO VIDA


Por Guilherme d’Oliveira Martins


À memória de Raul Solnado.


Há algumas semanas, quando tive a alegria de saber que a Cidade Velha na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, tinha sido integrada na lista do património mundial da UNESCO, lembrei-me imediatamente de que, se estivesse connosco, o António Alçada Baptista teria sentido um enorme júbilo, não tanto pela decisão formal, mas pela homenagem a um povo extraordinário e pelo reconhecimento de um símbolo fundamental da identidade cabo-verdiana. A lista da UNESCO é longa, mas a Ribeira Grande é irrepetível, e ali ainda estão vivos os ecos dos sermões do Padre Vieira, mas também sentimos a memória de livres e escravos e a ligação fecunda entre as várias culturas do Atlântico. E falar de Cabo Verde é referir-nos a uma cultura de afectos (e a palavra não pode banalizar-se, apela à economia das trocas e dos dons), à “cultura da morabeza” (palavra doce e misteriosa que significa apenas “amabilidade”), encruzilhada riquíssima de uma lembrança histórica comum feita de encontros e desencontros, mas sobretudo de disponibilidade, de emancipação, da capacidade de encontrar a dignidade das pessoas. E recordamo-nos do “Chiquinho” de Baltazar Lopes da Silva, protagonista maior do movimento “Claridade”, símbolo das diversas dúvidas e esperanças que se desenham nas idiossincrasias das vidas e das personagens do romance… E quem cita o grupo dos “claridosos” (e a sua vontade de autonomia e de diferenciação) tem de chegar a uma longa e rica história de emancipação, que chega à moderna literatura de Germano de Almeida, de Corsino Fortes ou de Arménio Vieira.


Mas, se é verdade que poderia continuar a falar das letras cabo-verdianas, partindo para o luso-tropicalismo moderno da Bahia ou de Pernambuco, o certo é que comecei a escrever a pensar nas “peregrinações interiores” do António Alçada e no facto delas conduzirem invariavelmente às amizades, aos longos passeios, ás conversas intermináveis. Éramos chamados a reviver a epopeia de Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado. A vida tem sempre muito que se lhe diga, e é preciso dispor-nos a vivê-la, com sentido de humanidade. E penso no Raul Solnado e no culto da amizade. “Façam favor de ser felizes!”. Esperávamos tudo dele. E estava sempre disponível para nos dar o melhor de si, da sua sabedoria, do seu gosto pela vida. Era um conversador incansável. Gostava do convívio e de contar histórias. Era um deleite a sua companhia. Disse-se por estes dias muito (e muito justamente) sobre o extraordinário humorista e actor. Foi muito mais do que isso. Recordo a sua inteligência e o seu elevadíssimo sentido da responsabilidade e do civismo. Não nos deixavam indiferentes os seus retratos humorísticos sobre os diversos tipos inesquecíveis, que poderíamos encontrar a cada passo no nosso dia-a-dia (desde a celebérrima Guerra de 1908 ao Zip-Zip, até muitas e muitas intervenções geniais no teatro e na via cívica, como “O Valente Soldado Schweick”, de Hasek, no Maria Matos). A ironia e o humor são sempre o melhor antídoto contra a desesperança e o fatalismo. E nunca esqueço a história, que me contou, sobre o modo como salvou perante a censura o seu número sobre a “ida à guerra” de Miguel Gila. Lembrou-se de fazer uma leitura muito rápida, inexpressiva, pouco perceptível. Cumpriu-o escrupulosamente e isso valeu-lhe um comentário compungido do coronel censor de serviço, prognosticando um tremendo fiasco para aquele número (e era pena para um actor que tanto prometia). Imagine-se o que não terá pensado o coronel depois do sucesso do Raul perante centenas de plateias entusiasmadas. Raul Solnado foi, com o seu humor inteligente e moderno, além do mais, um benemérito da língua portuguesa e das culturas da língua portuguesa. Mais do que um actor popular (que sempre soube ser) foi um homem de cultura, no melhor sentido da palavra. Que mais dizer?… Raul, António, Portugal, Cabo Verde, Bahia – que saudades do futuro. Até à vista!        

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