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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as suas crónicas no jornal “Público”. Esta semana: “Uma frincha na janela”

UMA FRINCHA NA JANELA


Por João Bénard da Costa


1 – O primeiro quarto da minha vida, que conheci e foi conhecido como quarto de mim, dava para um saguão. O Sol nascia nas traseiras do prédio desse quarto e bastante cedo passava por cima do dito saguão, iluminando-o vagamente. Quando eu acordava, sabia que era amanhã porque, no alto das portadas de madeira da janela que me ficava diante da cama (num pequeno espaço rectangular que a separava do tecto), em vez do escuro breu, se desenhava um pálido brilho, mais luminoso no centro, mais sombreado nos flancos. Posta a situação do quarto, a sombra era o que mais se dissolvia, mas a dissolução era tanta que por força havia de haver alguma luz, luz que só podia ser a luz do dia.
Quando acordava antes que me acordassem, ou quando estava doente, essa sombra era, literalmente, uma sombra de nino, como se chama a uma pessoa que persegue outra e não a larga. Mas nenhuma pessoa eu via. Via era uma orla marítima, com uma estreita tira de areia branca e um mar calmíssimo a perder-se no horizonte. E, do lado esquerdo, onde a zona penumbrosa era predominante, vinha uma montanha com a forma de uma ursa, repousando focinho e patas dianteiras no mar-chão. Demasiado bem conhecia essa montanha. Até pelo nome de Outão a conhecia. Não tinha dúvidas. Era a Arrábida que me vinha visitar em fotografia a preto e branco, ou em filme a preto e branco, porque a imagem se animava e nunca era a mesma pelo mesmo tempo. Nunca ninguém, crescido, me acreditou ou acreditou em tais visões. E, como mais ninguém partilhava esse quarto de criança, só em mim confiava para essa luminosa identificação. Visualmente, era uma visão pacificadora. Mas, às vezes, angustiava-me.



A Palavra, de Carl H. Dreyer


2 – Assim acontecia quando tinha mais febre. Mas também me acontecia, e por isso o evoco hoje, nas manhãs do Dia de Natal. Naquele tempo, as crianças como eu não recebiam os presentes na noite da véspera. Os adultos escondiam cuidadosamente da nossa vista o que tinham comprado em nome do Menino Jesus (Pai Natal não existia ainda). Deitavam-nos, prevenindo que noite, muito noite, o Menino desceria pela chaminé da lareira da sala, para pôr as prendas nos sapatinhos que lá tínhamos deixado, antes de ir para a cama. Só as podíamos ver de manhã. E – não fosse o diabo tecê-las – avisavam-nos que ai de nós se quiséssemos entrar lá, antes de eles lá nos levarem, de manhã e nunca muito de manhãzinha, pois que pais deitam-se tarde e não se levantam cedo.
Pela calada da nossa noite, enfeitavam a sala e distribuíam por oito sapatos (éramos quatro, nessa altura) as compras do Menino. Depois, a casa levantava a âncora para a travessia da noite, como me lembro de ter lido em Gide. Mas a excitação fazia-me (fazia-nos) acordar muito cedo. Logo que via o Outão diante de mim, percebia que a hora era próxima. Os minutos pareciam horas. Sombreados e luzeiros fixavam-se – como numa pintura – e não os via moverem-se. Se o Menino não tivesse vindo? Se não acontecesse nada? Terrível era a tentação de me levantar e ir espreitar, mas o medo da desobediência e do tabu tolhia-me. Houvesse uma Eurídice por perto, não sei se teria resistido. Mas, como já disse, não havia.
Até que a porta se abria e me chamavam, com inconfundível alegria. Na sala, rompíamos os quatro ao mesmo tempo e, por mais esperado que fosse, o milagre era, de ano em ano, maior. Tudo aquilo, tudo aquilo só para mim. E era tão forte que um ano houve em que perguntei à minha mãe como é que havia gente que não acreditava em Deus. A prova, irrefutável, era aquele maná caído do céu nos meus sapatos, coincidindo quase exactamente com tudo quanto eu tinha pedido. Depois, muito depois, chegou o tempo de eu fazer de Menino Jesus para os meus filhos e depois, muito depois, o tempo de, obrigado pelo tempo deles, fazer de Pai Natal para os meus netos. Mas sempre que vejo as crianças precipitarem-se para o monte de embrulhos, maravilhosos e maravilhados, repete-se-me a antiquíssima questão e a antiquíssima certeza. A manhã de Natal de outrora, a noite de Natal de hoje é a prova da existência de Deus.


3 – A mais absurda das provas? Obviamente, não vou argumentar. Mas já me apeteceria discutir, se será mais absurda que as chamadas “provas racionais”, nomeadamente as dos santo de Aquino. Sosseguem que não vou por aí. Apetece-me continuar em registo mágico, que é o registo destes musgos e destes presépios, destas palhinhas e destes reis. Sophia contou-me (“Os Três Reis do Oriente”) que Gaspar, Belchior e Baltazar viram a estrela que “mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria”. E reconheceram-na logo “porque ela não podia ser de outra maneira”. Quem reconhece a alegria das crianças, como quem vê a “carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência”, não pode conhecer e reconhecer estas coisas sem Te ver. “Como poderei suportar o que vi se não te vir?” É o oposto e é o mesmo.
E tão desarrazoadamente como até aqui – mas poderá a razão ter razão em tão trémulas paragens? – eu sei do Natal quando vejo alguns rostos humanos, alguns olhos humanos. Diz-se que, até aos trinta anos, cada um tem a cara que Deus lhe deu, e, depois dos trinta, cada um tem a cara que merece. Mas a cara que alguns mereceram – a cara de Rilke, a cara de Sophia, a cara de Renoir, a cara de Matisse, a cara de tantos humilhados e ofendidos, com que nos cruzamos na rua, a cara de James Stewart em “It’s a Wonderful Life”, a cara da Maria, única pessoa a quem fechei os olhos – não será uma cara só possível por uma mesma razão impossível, sem que elas a vissem e nós a víssemos por graça delas? Não será essa a cara que Deus lhes deu e pela qual vemos Deus? Ingmar Bergman, que não é propriamente, o exemplo de um crente, disse qualquer coisa de parecido quando falou do realizador Viktor Sjöström, que, aos 78 anos, interpretou o papel de Prof. Isaak Borg no filme “Os Morangos Silvestres”. “‘Os Morangos Silvestres’ terminam com um ‘close-up’ de Isaak Borg na hora da compreensão e da reconciliação. Nesse ‘close-up’, o rosto de Sjöström brilhava com uma claridade mística, como que reflectindo uma outra realidade e uma outra luz. Os seus olhos estavam muito abertos, sorrindo com ternura. Era maravilhoso. Nunca vi uma expressão tão nobre, tão perfeitamente liberta de qualquer inquietação.” Quem viu o filme sabe que Bergman não exagera. Mas de onde vem essa “outra realidade”, essa “outra luz”? Quem vê caras não vê corações, diz-se, e eu nunca achei que fosse exacto, mesmo quando as caras são muito belas e os corações muito negros. Mas, seja ou não seja, ninguém me explicou – olhem bem para o retrato de Rilke – por que é que há caras que nos fazem ver almas, literalmente almas do outro mundo? Nunca ninguém me deu uma explicação que me convencesse. Acredito porque acredito. Como acreditar no que vi se não te visse?


4 – Os não-crentes exasperam-se quase sempre, quando um crente vai chamar “outra realidade” para explicar vidas e mortes em nome de uma moral que para eles nada tem de transcendente. Podem dar-se milhões de exemplos de pessoas que padeceram inenarráveis tormentos, resistiram às piores torturas e morreram na maior dor, por fidelidade a um ideal em que acreditavam e que era totalmente alheio a qualquer prática religiosa. Mas se a morte fosse o fim, porque morrer em nome de outros que jamais conheceremos ou que nem sequer sabemos que virão a existir? Quem não suporta a explicação pelo mistério, não avança mais do que explicações igualmente misteriosas (o sentido da história, a fraternidade do género humano, a dignidade da pessoa, a consciência moral) para explicar essa inexplicabilidade. Reli há pouco tempo uma passagem de Buda em que este diz: “Não tenteis medir o Incomensurável com palavras e não tenteis mergulhar a corda das ideias no impenetrável; todo aquele que se interroga, se engana, todo aquele que responde se engana.
“Nada esperai dos deuses cruéis, como nós submetidos à lei do Karma, nada esperai dos deuses que, como nós, nascem, envelhecem e morrem a fim de renascer e não alcançaram libertar-se das suas dores. Tudo de vós mesmo esperai.” E voltei a pensar em mim, vendo a luz pela frincha de uma janela, nestes dias em que uma pequena parte da humanidade – mas a pequena parte a que pertenço – acredita comemorar o nascimento de um Deus no corpo de um Menino, acreditando que esse Menino se fez Homem e morreu na Cruz a perguntar porque tinha sido abandonado. E, dos Céus à Terra, houve a maior alegria quando foi Natal. E, dos Céus à Terra, cerrou-se a maior tristeza quando Ele, dando um grande brado, expirou. Mas como da Terra pouco se sabe e dos Céus nada se sabe, quem acredita só pode não saber. E, não sabendo, sabê-Lo.


(26 de Setembro 2003 in Público)

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