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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as suas crónicas no jornal “Público”. Esta semana: “O Homem de Fé”

O HOMEM DE FÉ


por João Bénard da Costa


1– “A esperança espanta o próprio Deus”, disse Péguy. Claudel, pela voz de Joana d’Arc na fogueira, proclamou que ela era a mais forte das três virtudes teologais.
Da caridade, não foi preciso esperar pelos hinos dos poetas. O amor de dilecção (agapê) foi posto no cume da hierarquia dos carismas por São Paulo, na celebérrima passagem da primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-13) que é sempre tão bom recitar: “Ainda que eu falasse todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver a caridade sou como o bronze que soa ou o címbalo que ecoa. Ainda que tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda as ciências, ainda que tivesse a plenitude da fé, dessa fé que move montanhas, se não tiver a caridade nada sou” (…). “A caridade é a que nunca passa. Desaparecerão as profecias. Calar-se-ão as línguas. Desaparecerá a ciência (…)”. “Quando era menino falava como menino, pensava como menino, raciocinava como menino. Quando me fiz homem, desapareceu em mim o que de menino em mim havia. Por agora, vemos como através de um espelho, confusamente, mas um dia veremos face a face. Hoje, só conheço imperfeitamente. Mas um dia virá em que conhecerei como sou conhecido.
“A fé, a esperança e a caridade ficarão para sempre e só elas para sempre ficarão. Mas a maior de todas é a caridade”.



2 – Misteriosíssima é esta hierarquia que secundariza, não secundarizando, a fé e a esperança, como secundariza, não secundarizando, os dons do Espírito Santo, exaltados logo de seguida, no capítulo 14 da mesma Epístola. No mesmo Paulo (Rom. 1 5, 16) pode ler-se o paralelo entre a fé e a esperança, quando o Apóstolo das Gentes se refere a Abraão como aquele que “esperou contra toda a esperança”. E esperou porque teve a fé, a “fé que lhe foi contada”. Antes de Abraão, houve certamente lugar para a esperança e para a caridade. Adão e Eva esperaram ser perdoados, Noé esperou sete dias pelo segundo voo da pomba, que lhe voltou com um ramo de oliveira no bico e, depois, esperou outros sete dias até a pomba nunca mais lhe voltar. A caridade (agapê e eros) acompanha a evolução da humanidade de Adão a Térah. Se ela não houvesse, o homem não teria conhecido a mulher e a mulher não teria conhecido o homem, e Eva não teria podido dizer que, por Iavé, outro homem nascera. Mas terão tido a fé, essas gerações nascidas à porta do jardim, que querubins de espada na mão guardavam para as impedir de voltar junto à árvore do bem e do mal? Sempre me interroguei sobre a razão da fé nessas gerações iniciais, interrogação que tem sentido radical quando se sabe que Abraão é chamado o pai da fé.
Porque Abraão é o primeiro – ou foi o primeiro – a ser tentado a duvidar da palavra de Deus, que o mesmo é dizer a duvidar de Deus. Como era possível que o mesmo Deus que o fizera gerar um filho na velhice, que fizera a velhíssima Sara conceber um filho, esse Isaac a quem tinha prometido tantos prodígios para com ele estabelecer uma aliança perpétua, como era possível que o mesmo Deus o mandasse matá-lo e oferecê-lo em holocausto como um cordeiro? Mas Abraão não duvidou. Penso nas páginas escritas por Kierkegaard (Temor e Tremor) quando assumiu o pseudónimo de Johannes de Silentio, para quatro vezes narrar o que se passou na madrugada em que Abraão saiu de casa, beijou Sara e levou com ele Isaac, para subir a montanha de Morija. Isaac era a única esperança de Abraão, e Deus mandava-o cravar o cutelo nessa única esperança. “Mas Abraão creu e não duvidou: creu no absurdo.” (…) Não virou os olhos para a direita e para a esquerda, esperando angustiadamente uma salvação. Não fatigou o Céu com orações. O Omnipotente punha-o à prova, e ele sabia que esse sacrifício era o maior que se lhe podia pedir. Mas também sabia que nenhum sacrifício é o maior quando é Deus que o pede. E levantou a faca.”
Kierkegaard, que ainda estou a citar, descreve, depois, todas as hipóteses possíveis para Abraão evitar o gesto infanticida. Podia ter-se morto, imolando-se em vez do filho. Podia ter imolado o cordeiro. Podia ter pedido a Deus que o poupasse, como muito antes pedira a Deus por Sodoma e Gomorra. Mas – volto a Kierkegaard – “não teria dado testemunho da sua fé, nem da Graça de Deus, mas teria mostrado quão terrível é subir a montanha de Morija. Nem Abraão, nem a montanha de Morija teriam sido esquecidos. Seriam tão lembrados quanto o são. Mas a montanha seria lembrada, não como a Ararat, onde a Arca se deteve, mas como um lugar de horror. “Foi lá” dir-se-ia, “que Abraão duvidou”.
De cada vez que penso sobre o mistério da Fé, penso nas palavras com que Kierkegaard termina, no livro que refiro, o que chamou o “elogio de Abraão”. “Eu sou aquele que não esquecerá nunca que tiveste que esperar cem anos para que te fosse dado, contra toda a esperança, o filho da tua velhice, esse filho que só conservaste porque levantaste o teu punhal contra ele. Eu sou aquele que não esquecerá nunca que, aos cento e trinta anos, não foste mais longe do que a fé”.
3 – Se ninguém pode compreender Abraão, como Kierkegaard também disse, é porque ninguém nunca teve a fé de Abraão. Quem é aquele que pode dizer às montanhas que se movam e as montanhas mover-se-ão? Quem são aqueles cuja fé espanta o próprio Deus, como (Mt 8-10) o espantou a fé do centurião e o levou a dizer “Em verdade, em verdade vos digo que nunca encontrei semelhante fé em Israel”? Homem de fé, mulher de fé, disse-se diz-se de tantos que a tiveram ou disseram ter. Tê-la-ão tido? Recordo “Pickpocket”, um filme de Robert Bresson. Lembrando o dia da morte da mãe e determinado acontecimento, o protagonista, um ladrão, dizia ter acreditado em Deus durante três minutos. O católico Bresson comentava: “Não conheço mais ninguém que possa dizer que acreditou em Deus durante tanto tempo”. Julgamos – julgam alguns – que sabem o que é a fé, a esperança ou a caridade. Mas se o soubessem, não saberiam o que nós sabemos. A quase todos os que o rodeavam, o Senhor sempre chamou “homens de pouca fé”.
4 – Conheci algumas pessoas que julgo tiveram fé, nem que fosse por instantes tão breves como o protagonista de Bresson. Mas o exemplo de fé mais pasmoso que de tão longe eu tenho presenciado é o do homem chamado Karol Wojtyla, Papa sob o nome de João Paulo II. Não é o “papa da minha vida”, no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo – sobretudo nos últimos anos – dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé. “Houve homens grandes pela sua energia, sua sabedoria, sua esperança ou seu amor”. Mas há os homens grandes pela energia, cuja força provem da fraqueza, grandes pela sabedoria cuja forma está para além do conhecimento, grandes pelo amor que vão para além do amor que a nós próprios temos. João Paulo II é um desses homens. Ninguém mais fraco – a cada momento julgamo-lo chegado ao limite das suas forças – e dessa fraqueza irradia uma força como jamais me lembro de ter pressentido. Ninguém mais longe do que a ideia de sábio pode convocar e ninguém tão perto dessa “loucura da Cruz” de que falam os místicos. Ninguém mais longe da imagem que, por exemplo, guardamos do “bom Papa João”, mas ninguém que a cada momento nos faça sentir que tudo o que faz o faz por amor até à imolação de todos os seus poderes, faculdades ou dons, até a imolação da sua própria função papal. A Igreja, e muitos dos que estão nas margens dela, celebraram agora o Jubileu deste Papa. Em cada uma das suas aparições públicas, eu vi o Homem das Dores ou o Homem da Fé. Muitos serão recordados por muitas outras obras ou palavras ou feitos. João Paulo II será recordado pela Fé. E, se tanto citei Kierkegaard, termino com palavras dele, roubadas à dedicatória do meu exemplar de “Crainte et Tremblement”, na tradução francesa de P.H. Tisseau. O livro foi-nos dado, à Ana Maria e a mim, a 25 de Maio de 1957, por um Amigo, que, hoje, pode saber melhor do que nesses verdes anos, do que copiou e do que nos doou: “Aquele que ama a Deus não cura de lágrimas nem de admiração. Esquece o sofrimento no amor e esquece-o tão completamente que nenhum traço da sua dor lhe sobreviveria se o próprio Deus não no-la lembrasse. Porque Deus vê no segredo, conhece a aflição, conta as lágrimas e não esquece nada”. Mais não digo e mais não posso dizer.


 31 de Outubro 2003 in Público

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