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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as suas crónicas no jornal “Público”. Esta semana: “As Almas do outro Mundo”

AS ALMAS DO OUTRO MUNDO.


por João Bénard da Costa


1 – Sophia de Mello Breyner Andresen contou-me um dia uma história fantástica, das mais fantásticas histórias dela. Estava a entrar em casa, bastante noite. Quando ia acender a luz do patamar, sentiu-se agarrada por um braço. Lá conseguiu chegar ao interruptor e deu de caras com um homem de mau aspecto, que certamente nada tinha a ver com aquele “voyou” de Apollinaire, de um dos poemas favoritos dela e de Menez: “Un soir de demi-brume à Londres / Un voyou qui ressemblait à / Mon amour vint à ma rencontre / Et le regard qu’il me jeta / Me fit baisser les yeux de honte.” Não, esse “mauvais garçon” (nem sei se era rapaz, ou homem feito, ou velho) não assobiou de mãos nos bolsos, mas exigiu-lhe a carteira. “Ah! – disse Sophia – o susto que o senhor me pregou! Pensei que era um fantasma, afinal é só um ladrão.” Ia-lhe passar a carteira. Mas foi a vez do ladrão se assustar com tal reacção, a única que jamais esperou. Correu para a porta e fugiu espavorido. Sophia costuma dizer que só há duas coisas que lhe metem muito medo: elevadores e fantasmas. Uma vez, nos tempos da PIDE, chamada para um interrogatório, recusou-se a subir de elevador e contou a um agente, certamente tão atónito como o ladrão do vão de escada, desses seus dois medos. Polícias e ladrões eram coisa nenhuma em comparação com coisas assombradas ou com coisas assombrosas.
2 – Nunca estive numa casa assombrada nem nunca me apareceu o fantasma de ninguém. Mas, muito ao contrário de Sophia e sem querer brincar com coisas sérias, os fantasmas não me metem muito medo e histórias deles (inevitavelmente penso em “The Ghost and Mrs Muir”, de Mankiewicz, que em português se chamou “O Fantasma Apaixonado”) sempre me atraíram. Chegar, como Mrs Muir, a uma velha casa à beira-mar, adormecer numa cadeira de balouço de uma grande sala envidraçada e, de repente, abrir-se a janela e aparecer um capitão dos mares do Norte, todo de negro vestido, suicida de outrora… Histórias dessas levaram-me sempre à certa, como sempre me irritaram os fantasmas galhofeiros, género Canterville. Se há almas que vêm do outro mundo a este, ou, penadas, neste ficaram, nunca podem cá vir para se divertir ou nunca podem andar por castelos ou cemitérios a levantar as saias às meninas ou a arriar as calças aos homens.



George Sanders em “The Ghost and Mrs Muir”


3 – Falei de “The Ghost and Mrs Muir”, meu amadíssimo filme, que há 24 anos me persegue, em efígie, por todas as casas onde morei e moro.
Mas o filme de fantasmas que hoje me puxou para os aléns não foi esse, nem é, literalmente falando, um filme de “poltergeists”. Trata-se de “Enchantment”, obra realizada em 1948 por um certo Irving Reis (e digo certo por que na sua curta vida foi muito incerto) com Teresa Wright e David Niven nos principais papéis.
Vi esse filme, pela primeira vez, em 1950, tinha eu 15 anos. Não direi que me lembro como se fosse hoje (nunca nada se lembra dessa maneira), mas lembro-me o mais aproximadamente possível do que essa expressão dá a entender. Ou seja, fecho os olhos e volto a ver muito do que há para ver, fecho os ouvidos e volto a ouvir muito do que há para ouvir, fecho os olhos e fecho os ouvidos e volto a ver e a ouvir tantas pessoas que já morreram, que viram o filme quando eu vi e que falaram do filme, diante de mim, de forma a que eu os ouvisse. Eu disse que não era um filme de “poltergeists” nem de aléns com estrelinhas? Disse e repito. Mas era o filme em que havia uma moradia de dois andares, sótão e cave, com razoável número de quartos (em 1948 ainda não existia, graças a Deus, a horrível palavra “assoalhadas”). Ora quando uma jovem tenente americana (uma tenente, disse bem) pedia ao velho general, seu tio-avô e dono da casa, que a deixasse ficar por lá o tempo em que ela ficasse por Londres (“Enchantment” passa-se em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial), num dos muitos “empty rooms” que seguramente na casa existiriam, o rabugento Sir Roland responde-lhe: “Quartos vazios nesta casa é coisa que não há.” Sir Roland vivia sozinho com o mordomo. Mas a rapariga, que acabou por ficar, descobriu que realmente nenhum quarto estava vazio. Todos eram habitados pelos fantasmas dos que neles haviam dormido, 50 anos antes. Assim, pouco a pouco, muito nesse estilo dos “forties”, que eu amo como só amo os romances de cavalaria ou as passagens dos recitativos às árias nas óperas de Bellini ou Donizetti, começava o “flash-back” que nos levava à infância do general e à noite em que, menina e órfã, o pai tinha levado para casa Lark, a do nome de cotovia. Desde essa noite, odeia a odiosa irmã de Rollo (vale para Roland), Selina de seu nome. Crianças crescem muito depressa ou muito devagar. Entre voltar ao presente e regressar ao passado, Rollo e Lark cresciam dos cinco para os 20 anos. Amavam-se em crianças, apaixonavam-se quando deixavam de o ser. Mas o ódio de Selina era maior do que a paixão deles. Numa noite se pode perder uma vida. A vida deles perdeu-se numa noite. Rollo, sempre nessa noite, jurava à irmã que, se perdesse Lark por causa dela, nunca mais entraria naquela casa enquanto ela fosse viva. Cumpria a promessa. Voltava, depois da morte da irmã. E, quando chegavam a sobrinha americana e um sobrinho de Lark, percebia que Lark regressaria também, para que os dois soldadinhos vivessem o que eles tinham deixado de viver. “Don’t bargain with happiness” dizia o general à tenente. Depois, ficava a conversar com o fantasma de Lark, que morrera pouco antes num lago da Suíça. Rever um filme que muito se reviu e em muito diferentes tempos da vida é rever também o fantasma desse filme. Mas da última vez que o vi – e foi na segunda-feira passada, na reabertura da Cinemateca – revi não só esses conhecidos fantasmas, como os fantasmas a quem já me referi dos que comigo viram o filme em 1950.
Selina, por exemplo. A actriz (Jayne Meadows), celebérrima no teatro e na televisão, raramente foi vista em filmes. É uma presença quase tão forte como a de Teresa Wright. Chamei-lhe odiosa. Odiosa ela é. E má. Mas morreu há muito pouco tempo a Mulher que, em 1950, quando tinha o dobro da minha idade, disse e eu ouvi: “Má? Não acho. É uma maneira de ser.” Para mim, essa conversa faz “raccord” com outra, que também nunca mais esqueci, em que a mesma pessoa falou amargamente do que se sofre quando se perde no amor ou em amor. Só a compreendi muitos anos depois, quando ouvi “O Ouro do Reno” com ouvidos de ver. Era o tema da renúncia ao amor que pela primeira vez eu ouvia. Tanto na empatia com Selina (e é bem verdade que é uma maneira de ser) como no muro que aqueles imensos olhos azuis começavam a amassar para se proibir de amar.
Assim, essa Mulher que eu não via há quase tanto tempo como Lark e Rollo estiveram sem se ver, essa Mulher que morreu sem saber que foi uma das figuras mais recorrentes dos meus sonhos de toda a noite em vida, essa Mulher voltou, trazida por Selina, vinda do outro mundo para me fazer ouvir o tema da redenção pelo amor. O tema de Lark, vestida de arminho ou de prata, trazendo na mão um cravo púnico ou uma rosa da Pérsia.
Demorei-me em Selina. Abreviei em Lark. Mas vieram outros fantasmas, muito mais da família de Lark do que da família de Selina. Fantasmas que nunca mais esqueceram aquela tarde de raios e coriscos em que Lark, tão, tão pequenina, se levantava da mesa com o beiço a tremer e Rollo lhe projectava coelhinhos nas sombras das paredes. Ou o vestido de baile de Lark na noite de todas as esperanças e todas as desesperanças. Ou o único beijo de David Niven a Teresa Wright. À medida que o filme passava (passam a 24 imagens por segundo, sabiam?) eu via e ouvia, no mesmo plano, Teresa Wright, David Niven e Jayne Meadows, ao lado de todos os fantasmas dos meus anos 50, ali tão presentes e tão fantomáticos como a irradiante aparência de corpos irrepetíveis. Como se todos estivéssemos a ver o filme juntos e a sermos simultaneamente os personagens deles e as consciências dos personagens deles. Fixar o fundo das pupilas mais móveis. Ouvir “o barulho do tempo”. Se a eles, todos eles, não chamo almas do outro mundo, que nome lhes hei-de chamar? Nunca me foram fantasmas de medo, mas de companhia.


4 – “A vida é tanto lenta. A Esperança é tão violenta”. Apollinaire, que me veio pela voz de Sophia, aparece no fim, em tradução livre de “Le Pont Mirabeau”. Esta foi a semana das nuvens. A semana dos doces fantasmas. Aliás, bem me preveniram que, quando chegasse a noite, me viriam vulnerar.


João Bénard da Costa, Público, 5.9.2003.

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