A VIDA DOS LIVROS
De 8 a 14 de Junho de 2009.
Acaba de ser publicada a edição portuguesa das “Cartas, 1941-1943” de Etty Hillesum (Assírio e Alvim, 2009, tradução de Ana Leonor Duarte e de Patrícia Couto). Trata-se do complemento (há muito esperado, ansiosamente) do “Diário, 1941-1943”, também inserido na colecção Teofanias, dirigida por José Tolentino Mendonça. João Bénard da Costa foi uma das pessoas que, entre nós, primeiro tomou consciência da força desta autora, e do seu testemunho e exercício extraordinário de diálogo e de amor, colocando-a ao lado de Cristina Campo e de Simone Weil. E temos de recordar esse facto, certos de que este livro seria sem dúvida o tema de uma das suas próximas crónicas, não fora ter-nos deixado inesperadamente. Cada uma a seu modo, as três pensadoras abriram as janelas do pensamento e da mística para os ventos contraditórios do século trágico em que viveram, no qual as situações limite revelaram a força e a fraqueza de uma humanidade em busca de sentido, perante o caos, o absurdo, a violência e o nada e marcada tragicamente pela “solução final”, por um genocídio e pela negação do espírito.
MILAGRES INTERIORES E EXTERIORES
“A minha vida é uma sucessão de milagres interiores”. Quem o diz é a própria Etty Hillesum, confrontada com a exigência da responsabilidade, perante a luta entre a barbárie e o desejo de compreensão e de amor pelos outros. “Qualquer situação, por muito miserável que seja, é absoluta e contém em si o bem e o mal” (11.8.43). E João Bénard da Costa recordava que “Etty Hillesum chegou a Deus pela carne e pela sensualidade, até descobrir que não se pode separar nem o corpo da alma nem o sofrimento do mundo da beleza do mundo”. Sofrimento e beleza encontram-se, procurando explicar o porquê de tantas dúvidas e perplexidades, de tantos altos e baixos. “Deus meu, fizeste-me tão rica, deixa-me por favor, partilhar generosamente essa riqueza. A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto Contigo, meu Deus, um grande diálogo” (18.8.43). E o certo é que ao longo do diário já nos tínhamos apercebido de que a compreensão do sagrado vinha da relação com as pessoas concretas e com a encarnação na sua expressão mais viva, isto é, em contacto com o próprio corpo. A espiritualidade surge, assim, como o corolário de um caminho de relação interpessoal complexa, em que o amor é, a um tempo, filía, agapé e eros. Ora, nas cartas nós sentimos, com uma força muito especial, que decorre de estarmos perante fragmentos de diálogos com os amigos e os próximos de Etty, a manifestação dessa especial força interior. Foi ela que pediu (fazia questão de lembrar o JBC), no Verão de 42, que a mandassem para Westerbork, sinistro campo de concentração na fronteira da Holanda, que era uma espécie de ante-câmara de Auschwitz. Permaneceu aí de Agosto de 1942 a Setembro de 1943. E o diário continua até 13 de Outubro de 1942. As cartas escritas sob o peso de todo o tipo de condições adversas, em Westerbork, são, deste modo, um complemento natural do “Diário”. E o mesmo João Bénard da Costa, ao falar de Etty, sente-se maravilhado e fala também de milagres exteriores produzidos pela leitura de uma reflexão mística tão rica, nas vésperas desta judia holandesa partir para Auschwitz. E essa extraordinária recensão, muito sentida, terminava desta maneira tocante: “Este livro também nos leva a aprender a ajoelhar, coisa que nem todos sabem, coisa tão rara e tão difícil” (cf. Público, 1.6. 2008).
TESTEMUNHOS MARCADOS NO TEMPO
Oiçamos a própria Etty Hillesum a dirigir-se a Christine van Nooten, em 7 de Setembro de 1943, nos arredores de Glimmen, a caminho de Auschwitz: “abro a Bíblia ao acaso e eis o que encontro: O Senhor é o meu alto refúgio. Estou sentada em cima da minha mochila, no meio do vagão cheio. O pai, a mãe e o Mischa estão nos vagões mais à frente. A partida acabou por chegar inesperadamente. De ordens repentinas de Haia, especialmente para nós. Deixámos o campo a cantar, o pai, a mãe firmes e calmos, tal como o Mischa. Viajaremos durante três dias. Obrigada pelos vossos cuidados. Amigos que ficaram para trás hão-de escrever para Amesterdão; talvez venhas a receber notícias por eles. E pela minha última carta longa. Até à vista, de nós os quatro. Etty”. Este é um dos textos mais impressionantes da história contemporânea. Conhecemos muito poucos testemunhos directos, vindos de quem partia para o campo de extermínio, sabendo ao que ia, e pondo na escrita a serenidade e o sobressalto de quem fazia a ligação vivencial entre imanência e transcendência. O postal onde está escrita esta mensagem chegou até nós porque foi atirado para fora do comboio por Etty e pôde ser encaminhado para o seu destino. Houve ainda outro postal, para os moradores de Gabriel Metsustraat, que já não existe, mas cujo teor conhecemos através de uma outra missiva de Maria Tuinzing. Este é o testemunho final, definitivo. Mas antes há o relato de contacto com as outras situações limite: «Nessa tarde (diz a carta de 24 de Agosto de 1943 para a Han Wegerif e outros), fiz uma vez mais, a ronda pelo meu barracão-hospital, indo de cama em cama. Quais as que ficariam vazias no dia seguinte? As listas de transporte nunca são reveladas senão no último momento; ainda assim, alguns sabem antecipadamente que terão de partir. Uma menina chama-me. Está sentada na cama, muito direita, de olhos arregalados. A menina tem pulsos finos e um rostinho estreito e transparente. Está parcialmente paralisada, começava justamente a reaprender a andar, apoiando-se a duas enfermeiras, passo a passo. ‘Já sabe? Tenho de ir?, diz-me, sussurrando. ‘Como? Tu tens de ir ?’. Olhamos por momentos uma para a outra, incapazes de falar. O seu rosto como que desapareceu; ela é apenas olhos. Então, volta a falar, com uma vozinha monocórdica e abafada: ‘Que pena que tudo o que aprendemos na vida tenha sido em vão, não acha ?’ E ‘É tão difícil morrer, não é ?’». Mais do que o relato de um drama, sentimos a própria essência do drama, na primeira pessoa, na relação com os outros, como as outras metades de cada um de nós.
UM TESTEMUNHO IMPRESSIONANTE
Ao lermos estas cartas, sentimos um testemunho de paixão e de ressurreição, mas sobretudo de uma fantástica compreensão dos outros. Esses são os tais milagfres interiores e exteriores. Perante os dramas terríveis que encontra em Westerbork, Etty diz: “Afirmei uma vez para mim mesma em voz alta, a meio da noite, constatando com certa sobriedade: ‘Pois, agora estou no Inferno”. Não há, pois, ponta de idílio gratuito, mas disponibilidade e entrega. Entende e assume, por isso, o que a russa Liubtsca lhe pergunta: “Deus Nosso Senhor compreenderá, certamente as minhas dúvidas num mundo como este, não acha?” (24.8.43). Ao caminhar perdida entre os barracões, Etty olha a humanidade, não como realidade vaga e abstracta, mas como um lugar de exigência de amor, de compreensão, de cuidado e de entrega. Mas não se trata apenas de olhar. “Olhamos para diante, mas não seria melhor, por vezes, olharmos mais para trás e para dentro de nós?” (s.d., depois de 1941). Jopie Vleeschhouwer descrevê-la-á com uma aura de generosidade e de alegria, quando é posta perante a brutal ordem de partir para Auschwitz. Ei-la, “conversando alegremente, rindo, com uma palavra amável para todos os que encontrou pelo caminho, cheia de humor vibrante, talvez com apenas um pequeno toque de melancolia, mas era mesmo a nossa Etty, como todos vocês a conhecem” (7.9.43). A cada passo, ao lermos estas cartas, sempre difíceis, sempre exigentes, encontramos essa mulher extraordinária. Na bolsa, que a acompanhou para o campo, estava a Bíblia, mas também estava “O Livro de Horas” de Rainer Maria Rilke. Por isso, depois de invocarmos o João na Capela do Rato, na semana de Pentecostes, o padre Tolentino abriu a sua sacola e pôs-me na mão a última edição de Rilke, em português – em nome de memórias acolhedoras e necessárias. “Eis que a hora se inclina e me vem tocar…”
E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins