A Vida dos Livros

“O Essencial sobre Raul Brandão”

O pequeno livro “O Essencial sobre Raul Brandão” de António M. B. Machado Pires (INCM. 1997) é um precioso repositório sobre um dos escritores portugueses mais fecundos do século XX, que abre horizontes para a grande literatura mundial.

NECESSIDADE DO DESCONHECIDO
“Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica de novo predomina e a asa do Sonho outra vez toca os espíritos, deixando-os alheados e absortos. A necessidade do desconhecido de novo se estabelece” – assim se exprimiu o autor de “Humus”, definindo em síntese o que caracteriza a geração de 1890, que une Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, António Nobre ou Francisco de Lacerda. São os símbolos que se impõem, numa visão trágica do tempo. E assim afirma em “Os Pescadores”, sob a luz doirada e o azul do céu, da Foz do Douro, com o negrume do luto pelo mar agreste: “essa Foz reduz-se cada vez mais na minha alma a um cantinho (…) que retenho na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me entranho na morte”. E é a seu avô, “morto no mar”, que Raul Brandão (1867-1930) dedica essa fantástica biografia do mar português. Militar de profissão, sem entusiasmo, leitor insaciável, cronista, polígrafo, pintor por amadorismo, o que lhe permitiu ser um extraordinário escritor de paisagens e da natureza, torna-se um sedentário. Uma vez reformado do Exército, fixa-se na casa de Nespereira nos arredores de Guimarães, com sua mulher Maria Angelina, preciosa ajuda. Aí cultiva o amor à natureza e às árvores, “verdadeiro paradigma do mistério da vida”, permanecendo sempre durante as vindimas, vindo só depois para Lisboa, onde residiu na “York House”, antes de ter uma casa própria. 

ESCRITA ARDUAMENTE TRABALHADA
A sua escrita, arduamente trabalhada, segundo um humanismo panteísta, exerce influência significativa nos autores mais marcantes do século XX, como Torga, Régio, Nemésio, Branquinho da Fonseca, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Agustina, Almeida Faria ou Luísa Dacosta… Pode, aliás, dizer-se que é maior a sua influência do que à primeira vista poderia parecer – sendo um indiscutível mediador relativamente à presença de Dostoievsky na literatura portuguesa. Brandão levou, assim, à leitura do autor de “Crime e Castigo”, mas igualmente foi ele mesmo portador dos ecos dessa influência. Homem de meditação e não de ação, o escritor centra-se no “seu buraco a cismar”. Machado Pires fala, por isso, de duas faces: a do mundo da Dor e do Sonho recalcado e a da escrita das viagens, das paisagens de luz e cor… Cinco palavras marcam a sua literatura: Sonho, Dor, Tempo, Morte e Luz. “A verdadeira existência, a que nos custa a deixar, é essa que nos parece quimérica. É até se me não engano, a única que existe. Às vezes morre, dilui-se: a alma já não exala sonho, e o corpo continua a viver – mas em verdade vos digo que o homem a quem isto suceda não passa de um cadáver” (“A Farsa”, 1903). Se nos lembrarmos das obras históricas de Brandão, percebemos que é menos o acontecimento que lhe importa e muito mais o drama e as contradições humanas. “É difícil de concluir se os homens é que fazem a História ou se é a História que faz os homens”. Sobre El-Rei Junot ou sobre Gomes Freire, o que encontramos são intuições, simpatias, impulsos, quase totalmente espontâneos. Vitorino Nemésio, quando o visita em Nespereira, descobre uma gravura que representa o Remexido, rebelde da serra algarvia, defensor de D. Miguel, símbolo do povo descamisado. É a sua paixão pela adversidade… 

UMA OBRA INCLASSIFICÁVEL
Raul Brandão procura mergulhar no íntimo do ser humano. Esse desígnio é evidente em “Humus”, que Régio considera difícil de classificar, mas que David Mourão-Ferreira entende como precursor do “nouveau-roman” e que Jacinto do Prado Coelho julga ser um anti-romance. Há a projeção de um mundo dostoievskiano marcado pelos grandes conflitos da alma humana, que reúnem sentimentos e espontaneidade. A aparente desordem expositiva revela, assim, a necessidade de compreender os limites. “O importante neste mundo talvez não seja procurar a verdade – talvez seja amar. E amar não consiste em fazeres o teu dever – nem mesmo em te despires pelos outros – amar é uma irradiação. Amar é um estado de graça. Poder amar é quase ser Deus” (“O Pobre de Pedir”, 1931).  Em “Jesus Cristo em Lisboa” (1927), escrito com Teixeira de Pascoaes, mas sobretudo marcado pelo próprio Raul Brandão, torna-se evidente o eco de Dostoievski: o cristianismo do século XX defronta-se com a incompreensão do exemplo de Cristo, que se vê rodeado de ambiciosos e corruptos, o que exige uma nova luz, franciscana e idealista, dando voz aos desgraçados, aos visionários, aos pobres e aos poetas. É o retrato – di-lo A.M. Machado Pires – da “Vida em todos os seus incompreensíveis e brutais contrastes, o idílico e o prosaico, o extase e a dor, a ternura (…) e a brutalidade, o efémero e o eterno, a avidez e a fugacidade, a trágica consciência da irreversível corrida para a morte, mas também a paixão perante o egoísmo, a humildade no pecado, que vale mais do que o orgulho na virtude (…), o fantasma que existe em nós, as misérias ‘fundo de poço’ escondidas pelo eu imagem-para-os-outros ou ainda a História do historiador perante a História do Homem – a Dor, lei eterna e motor da História”. 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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