UM TEXTO ANTOLÓGICO – “NOLI ME TANGERE”
Noli me tangere, Tiziano, 1511-1512, Óleo sobre Tela, National Gallery, London.
«Já cai a noite e já tomba o dia. É quarta-feira, essa Quarta-Feira que antigamente se chamava de Trevas (ainda a chamam assim?) e precede o mistério do Trídolo Pascal que em Quinta-Feira Santa começa e na noite da Ressurreição acaba. Na noite de Trevas, escrevo ou dito eu esta crónica que será lida no dia da Ressurreição. “E se Cristo não tivesse ressuscitado toda a nossa Fé seria vã”, como São Paulo escreveu no célebre e misteriosíssimo capítulo 15 da Epístola aos Coríntios. Como são belos estes rituais da Semana dita Santa! Três dias de luto, igrejas enegrecidas. “Crucifige! Crucifige! Morte ao Rei dos ladrões!” “O Rei dos espinhos! O Rei dos espinhos!” Maria pergunta: “Filho, Pai e Marido / Quem Te há ferido e desnudado?” E vêm-me à memória esses e outros versos de O Desequilibrista de M. S. Lourenço, poema de outrora. E subitamente, tão subitamente como apareceu a Maria de Magdala o jardineiro, termina o singular combate travado entre a morte e a vida, de que falava dantes a sequência da Missa Pascal. “Foi vencida a lei do caos e o Tártaro foi esbofeteado / A terra agitada agora por este furacão de sinos / Diz-vos que Eu ressuscitei” e estou sempre perto de M. S. Lourenço, agora tradutor de Claudel e daquele fragmento do Toi, Qui Es-Tu?, que começa por: “Há muito já que contemplo uma estrela. A morte foi submergida na vitória [I Cor. III. 15: 53-55]. Oh morte onde está a tua vitória? Oh inferno onde está o teu aguilhão?”. Das minhas antigas vigílias pascais lembra-me o Aleluia! Aleluia!, cantado no gregoriano dos Olivais, ou no sol a pino do meio-dia do Sábado que de Aleluia se chamou, ou na noite de sábado para domingo, quando se reformou a liturgia. E lembra-me essa alegria que nos chamava estultos e tardos de coração, se não exultássemos e rejubilássemos nela. Bento XVI vem em meu socorro!
A maior de todas as festas. “A festa brilhante” chamou à Páscoa S. João Crisóstomo. Foi-o ou era-o para mim? Se, em anos de maior apostolado, fiz o possível para como tal a sentir, a verdade é que o décor de Lisboa, anos 30-anos 60, não ajudava muito, ou não ajudava tanto como no Natal.
Depois das confissões, no Loreto ou na Madeleine, depois do único dia sem missa (Sexta-Feira Santa), o maravilhoso pagão não se misturava com o maravilhoso cristão. Na Páscoa, pelo menos no meu “meio” e na minha cidade, não se davam presentes nem se recebiam presentes. A única variação eram as amêndoas, sobretudo aquelas francesas, em forma de bebé, com licor lá dentro. Que eu me lembre, nem a família grande se reunia e, se o jantar era melhorado, não tenho memórias de anho. Mais tarde, quando eu fui pai, trouxe para casa o coelhinho da Páscoa, da família dos meus filhos e dos meus netos, mas não da minha. A minha mulher trouxe do Norte os carneiros ou os cabritos, mas tudo me veio de fora e não do dentro da infância.
Ouvia histórias de espantar. Familiares ou amigos mais distantes contavam-me como na província era bom: a visita do padre a todas as casas, ou um calicezito para o senhor abade, a roupa a corar, as casas todas a cheirar a enceradinho e a lençóis doces. Muitos bolos com nomes apetitosos. Hoje, ainda, pessoas com grandes talentos manuais passam a semana a amassar folares. Trago-os para ao pé de mim, mas sem grande sucesso, que nunca foram muito lá de casa e parecem abetos em mansões de presépios.
Em Lisboa, não havia nada disso. A tarde da Páscoa era tarde triste e o coração apertava-se a pensar no terceiro período, normalmente tão pequenino.
Pensando bem, acho que há uma razão para isso. No Natal, festeja-se o nascimento do Menino Deus. Presépio, palhinhas, reis magos. Tudo coisas que puxam à família e à verdade. Na Páscoa, mesmo que soubéssemos que era a maior das festas, misturava-se a morte e a vida, a Cruz e a pedra retirada do sepulcro. O corpo de Cristo, ressuscitado, impunha uma distância que nem era muito espírito nem era muito carne, por maior que fosse o mistério.
É verdade que Cristo, nas suas aparições entre a Ressurreição e a Ascensão – S. Paulo diz que Ele apareceu sete vezes em tão breves quarenta dias -, disse, segundo S. Lucas, que não era nenhum fantasma: “Porque vos perturbais tanto e porque é que a dúvida ocupa tão grande lugar em vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés. Sou Eu! Tocai-me e dai-vos conta que um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho.” E dizendo isto mostrou-lhes as mãos e mostrou-lhes os pés. E como, embora imensamente alegres, eles se recusassem a acreditar e continuassem estupefactos, perguntou-lhes: “Tendes alguma coisa que se coma?” Mostraram-lhe um pedaço de peixe grelhado. Tomou-o e comeu-o à vista deles.” (Lc, VII. 24: 38-43). Foi o mesmo Lucas quem contou a história da ceia de Emaús. Mas, apesar de um longo e revelador diálogo, foi só quando se sentou à mesa com os discípulos, quando os abençoou, quando tomou o pão, quando o partiu e quando o deu a cada um deles, que os olhos dos discípulos se abriram e O reconheceram. Mas já Cristo havia desaparecido como um fantasma, Ele que como um fantasma lhes aparecera a sessenta estádios de Jerusalém.
Mas, mesmo em S. Lucas, dos três evangelistas sinópticos o mais prolixo em pormenores sobre esses dias após a Ressurreição, o nome de Jesus, a acreditar nas traduções de que disponho, nunca é citado. O evangelista diz sempre “Ele”, como se o pronome e não o nome bastasse para O demonstrar.
Mateus e Marcos são singularmente elípticos. Quem mais abunda é S. João, sobretudo o apêndice, que ainda hoje se discute se é da autoria do discípulo que o Senhor mais amou ou de um discípulo mais amado por João.
É em S. João que se encontra a narração do episódio mais perturbador. Maria de Magdala, depois da morte do Senhor, não saiu de ao pé do túmulo e soluçava. “Soluçando, inclinou-se para o túmulo e viu dois anjos, vestidos de branco, sentados no local onde repousava o corpo de Jesus. Um sentado junto à cabeça, outro sentado junto aos pés. Perguntaram-lhe: “Mulher, porque choras?” “Levaram-me o meu Senhor”, respondeu-lhes ela. “E não sei para onde O levaram.” Dizendo isto, voltou-se e viu Jesus que estava de pé, mas ela não sabia que era Ele. Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei buscá-lO.” Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere” [não me toques], porque ainda não subi para junto do Pai. Mas vai ter com os irmãos e diz-lhes que eu subo para o Meu Pai e Vosso Pai, para o Meu Deus e Vosso Deus.” (Jo, VIII. 20:11-17).
Desde tempos imemoriais, esta foi a aparição do Senhor que mais reteve a atenção e a confusão de exegetas e artistas. Porque é que Jesus, que tantas vezes, nesses dias post mortem, insistiu com os apóstolos para que O tocassem e Lhe tocassem nas mãos e nos pés; porque é que Jesus que, segundo o mesmo S. João, e logo na narrativa seguinte, mandou Tomé estender a mão e metê-la na chaga do lado para não continuar a ser incrédulo; porque é que Jesus não deixou que Maria de Magdala O tocasse (nalgumas versões, aparece mesmo a expressão “Não me toques assim”) e lhe deu como justificação o facto de ainda não ter subido para o Pai, o que só aconteceu quarenta dias depois? Segundo a tradição, Maria de Magdala foi a mesma mulher que, em casa do Fariseu, Lhe lavou os pés com perfumes preciosos e Lhos enxugou com os seus cabelos, provocando grande escândalo, porque era uma pecadora pública. Bem sei que as modas me são adversas, com as pantominices dos códigos e quejandos, mas seja ou não Maria de Magdala a mesma Maria de Betânia do episódio da casa do Fariseu, é a mulher que Cristo escolheu para a Sua primeira aparição e é a mulher a quem não consentiu contacto físico. Na mais célebre das representações desse episódio, Cristo está quase nu, apenas semienvolto na mortalha, de que tanto se desembaraça como se cobre, e Maria de Magdala está de rastos ao pé d’Ele, detendo a mão que ia tocar a mão do Senhor pousada sobre a perna esquerda. De jardineiro apenas tem a enxada na mão esquerda e o corpo que tem a cor macilenta de um cadáver, a cor com que o mesmo pintor (Tiziano) representou Lázaro ressuscitado. Se é lícito especular sobre essa representação, o que Tiziano figurou foi um cadáver que ainda não tinha ressuscitado no esplendor da ressurreição da carne e que, por isso, não quis ser tocado na carne ainda submetida ao aguilhão da morte. Nas aparições seguintes, Cristo já descera aos infernos e já subira aos céus. Já assumira o corpo glorioso, tão tocável como um corpo vivo. O olhar de Maria de Magdala foi o único olhar que O viu entre. Se eu tiver alguma razão, a tela de Tiziano é a única representação do ser corruptível que ainda se não revestiu da incorruptibilidade, do ser mortal que ainda se não revestiu da imortalidade, de que fala S. Paulo quando distingue o corpo físico e o corpo psíquico, e o corpo psíquico do corpo espiritual. “Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim foi escrito: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma viva; o último Adão é um espírito que dá a vida. Mas não é o espiritual o que primeiro aparece: primeiro aparece o psíquico, depois o espiritual. O primeiro homem, oriundo do solo, é terrestre. O segundo homem vem do céu. Como foi o terrestre, assim serão os terrestres; como o celeste, assim serão os celestes. E tal como revestimos a imagem do terrestre, um dia revestiremos a imagem do celeste.” (Cor III. 15:45-49). E é depois desta passagem que S. Paulo diz que nos vai dizer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados. Na Páscoa da Ressurreição, todos ainda não estamos transformados, mas ela contém a promessa que a transformação é para todos. Talvez seja por isso que a carne vacila mais no momento do noli me tangere do que quando celebramos o mistério da Encarnação. Talvez por isso a Páscoa nos deixe mais desamparados, jardineiros de um horto situado no algures entre as oliveiras e os cedros do Líbano ou entre a Paixão e a Glória.
Público, 8.4.2007.