A COLÓQUIO/LETRAS retoma a sua publicação com uma periodicidade quadrimestral e o primeiro número de 2009 reúne textos das intervenções no Congresso Internacional Eduardo Lourenço – 85 anos organizado pelo Centro Nacional de Cultura e realizado na Fundação Calouste Gulbenkian em 6 e 7 de Outubro de 2008.
Intervenção de Eduardo Lourenço na sessão de encerramento do Congresso:
“Já é noite, muito boa noite a todos.
Raras vezes, talvez nunca me tenha sentido numa situação tão inconfortável e ao mesmo tempo tão gostosa e narcisicamente plena do que neste momento.
Não sei quem teve — sei quem teve, sobretudo quem organizou — a ideia deste Colóquio em torno, se não de mim, da minha obra.
Acho uma ideia excessiva, uma ideia que não corresponde, não tem um objecto plausível, pelo menos do meu ponto de vista, mas aceitei a hipótese e assumi-a durante estes dias como uma ocasião única de poder de algum modo emendar aquilo que tem sido, durante muito tempo, como autodefesa, o meu discurso, aquele que o meu amigo José Saramago intitula entre angélico e demoníaco, caindo mais para o lado do demoníaco.
Antes de mais, quero agradecer àqueles que tiveram essa ideia, embora essa ideia tenha sido para mim uma ocasião de me confrontar com uma imagem de mim próprio que me custa realmente aceitar. Este coro de elogios, este mel derramado durante estes dias sobre mim ou aquilo que eu escrevi lembra-me uma frase de S. João da Cruz, que era que, nesta nossa vontade unitiva, neste gosto de chegar a qualquer coisa de absoluto, devíamos desconfiar sobretudo da doçura do mel. Não houve nem sequer uma pequena gotinha de vinagre para que eu me sentisse mais conforme àquilo que sinto. Mas agradeço ao Centro Nacional de Cultura e ao seu presidente, o meu caro amigo Guilherme d’Oliveira Martins, a toda a comissão executiva deste Colóquio e igualmente, naturalmente, à Fundação — a esta Fundação que eu agora nem consigo objectivar porque se tornou um pouco também a minha casa —, em ter aceitado que aqui se realizasse esta insólita homenagem a este autor virtual, que ao fim de dois dias se tornou num autor real. De maneira que eu agora daqui para diante vou ler, quando tiver ocasião, um autor chamado Eduardo Lourenço.
Naturalmente que eu aprendi imenso sobre mim próprio durante estes dois dias. É dos outros que se aprende. De nós, seria uma espécie de exercício insensato, ter de aprender, talvez por pleonástico, aquilo que nós sabemos, que não queremos encarar, que é o nosso segredo e o nosso mistério. É preciso que os outros no-lo digam, é preciso que os outros nos dêem um certificado de existência, sobretudo para aqueles como eu — e nisso efectivamente me encontrei, como se esse fosse meu irmão gémeo, com o famoso Fernando, rei da nossa Baviera de sonho.
Talvez o pequeno mistério Eduardo Lourenço se esclareça. Eu não sou muito dado a esse género de elocubrações e não acredito realmente na verdade desse tipo de radiografias imaginárias, que são as dos astrólogos, por exemplo. Nisso sou muito diferente de Fernando Pessoa. Não só não sei, é uma ciência de um outro género, mas é uma ciência — a da astrologia —, mas a verdade é que eu nasci sob o signo dos Gémeos. E isto não me diz nada, não me dizia nada, até que um dia me lembrei que efectivamente em menino, um dia de Verão, ainda com o perfume das eiras à minha volta, estava olhando o céu estrelado, deitado de costas, e pensando que na estrela que eu estava vendo havia um outro Eduardo Lourenço, que não era Lourenço, um simples Eduardo, Eduardinho, que me estava olhando do outro lado.
Portanto esta experiência de dividido foi uma experiência fáctica ao nível simbólico, muito jovem, não sei se por ter nascido no signo dos Gémeos, ou porque eujá era,já tinha essa vocação do dividido, do duplo. E, digamos, agora para consolar o meu amigo José Saramago, de duplicidade, que eu converto numa palavra um bocadinho mais nobre, menos perigosa, de ambiguidade. Mas esta ambiguidade não é uma ambiguidade cultivada, é pura e simplesmente o sinal da minha fraqueza ou fragilidade diante do mundo, de alguém que, provavelmente, como muitos de nós, se fere em todas as esquinas do real, esquinas da vida, no olhar dos outros, e que inventa uma carapaça, um sítio, um ponto de fuga. E esse ponto de fuga efectivamente foi esta viagem sem fim que tendo começado provavelmente nessas viagens que nós fazemos em criança através da leitura e do mundo que nos cerca, e principalmente das nuvens que foram o meu primeiro cinema, de algum modo se continua através dos livros que já não são as nuvens, letras do alfabeto divino ou natural, mas que são letras da cultura humana. Portanto esta falta de unidade do meu pensamento, dispersividade, de algum modo, é contraponto dessa atenção um pouco esquizofrénica, patológica, em relação a tudo quanto é a manifestação da experiência humana. E nisso naturalmente que me encontrei facilmente nesse poeta que conheceu as viagens na virtualidade antes que entrássemos num mundo já quase virtual, como é o nosso. Lembro-me de Pessoa querer ser tudo de todas as maneiras e isto é efectivamente — Saramago tem razão —, isto é uma tentação demoníaca.
Como é que um ser tão esquivo, tão pouco ciente da sua própria existência e consistência, pôde — agora vejo que é provavelmente aquilo que eu pensava — ter alguém que se interessasse por ele, não a título pessoal, mas ainda mais dificilmente, através daquilo que nós chamamos livro? Compreendo que isso possa acontecer a um poeta — para isso eles nascem, para isso eles existem —, a um ficcionista, que efectivamente nos recria sem cessar o universo, do seu próprio ponto de vista, mas um ensaísta… Não compreendo esta espécie de milagre, que agora verifico, de ter alguns leitores ao longo de tantos anos. É verdade que eu vivi durante mais de meio século, quase, para mim próprio numa espécie de grande silêncio, que não fiz disso um drama, a não ser de tipo subjectivo, um drama daqueles que nós vivemos no interior das quatro paredes do crânio mas que não são grandes em si, são apenas nossos. Durante alguns anos, quando comecei a escrever nos jornais portugueses de carácter literário, fi-lo no tal jornal de que já se falou aqui, na página literária d’ O Comércio do Porto, que era dirigida por um senhor que era ex-tenente, Costa Barreto, um homem duma candura extraordinária, de uma inocência (não era como dizia o meu amigo Prado Coelho, uma consciência perversa, não. Era mesmo inocente). E, ao fim de escrever, durante alguns anos, n’O Comércio do Porto, eu já estava lá fora, quando vinha a Portugal, aqui a Lisboa, nunca ninguém em Lisboa tinha lido uma linha do que se escrevia n’O Comércio do Porto. Era um grande desconforto para mim, porque eu pensava que alguém tinha ouvido qualquer coisa, lido qualquer coisa. E um dia encontrei o famoso Costa Barreto e disse-lhe: «Ó Costa Barreto, o seujornal é umjornal que se lê muito cá no país, mas, olhe, lá em Lisboa ninguém lê O Comércio do Porto, ninguém conhece O Comércio do Porto.» E ele sem se desmanchar diz-me assim: «Sabe, Lisboa não, mas no Brasil lê-se muito.» E eu disse assim: «Bom, quando for ao Brasil eu vou enfim recolher alguns benefícios desta colaboração insensata.»
Hoje, neste dia, e agora nesta hora, só me lembra a famosa parábola do Evangelho, talvez a mais bela das suas parábolas, que tanto encantava André Gide, o filho pródigo. Como é que esta pessoa que vos fala, em dois dias teve a ocasião de viver subjectivamente após a famosa parábola do filho pródigo, o que saiu de casa, o que se dispersou, o que fez uma vida que não é a vida esperada, quase mesmo a vida honesta, dispersou riquezas, o que viveu segundo a sua vontade, e quando chega a casa, depois dessa longa ausência, o pai manda escolher o melhor dos seus animais para o sacrificar em sua honra e para o matar. Com grande escândalo naturalmente do filho fiel, aquele que tinha permanecido em casa. E eu estou um pouco nessa situação. De repente, encontrei-me neste país que é o meu, que efectivamente amo à maneira ardente e desesperada da Geração de 70, porque é o meu, porque provavelmente toda a gente ama o sítio onde nasceu, a pátria que lhes coube, o sinal da sua contingência e o sinal da sua inscrição absoluta neste tempo nosso, tempo terrestre.
Como é que eu me pude converter, em dois dias, na imagem do filho pródigo, como é que tanta gente aqui presente teve a gentileza de estar a ouvir falar de mim, a fazer-me existir, a comunicar-me a sua gentileza, o seu fervor, que eu desconhecia, que naturalmente muitas vezes imaginei que podia existir algum sinal do que eu tinha escrito, que eu tinha pensado, que eu tinha sentido e estava escrito? Não sei. Esse é o milagre naturalmente da amizade e esse não pode ser agradecido. Pode ser apenas vivido numa incompreensão absoluta. Foi um momento — guardarei dele, naturalmente já não terei muito tempo para o guardar, guardarei dele a recordação das recordações e, daqui para diante, ficarei convencido que este personagem virtual é efectivamente um autor chamado Eduardo Lourenço.
E como não quero despedir-me esta tarde sem falar do Eduardo Lourenço real, que é aquele que escreve alguns textos que aqui foram comentados e lidos, quero terminar com um texto desse senhor, do tal Diário que só existe também em termos virtuais:
«Só à hora do nosso crepúsculo descobrimos, enfim, que estivemos no paraíso e o vamos perder. Não nos espantou ter sido recebidos por um sol que nos esperava há biliões de anos, pela frescura dos rios e dos prados, pelo silêncio macio das florestas, nem termos reconhecido a árvore da vida plantada mesmo no meio da criação. Agora que me volto para o lado sem sombra reconheço melhor a torrente de luz que inunda as minhas costas e envolve a recordação de cada um dos meus passos na terra batida ou no asfalto da noite. Nesse passado lembrado como uma morte gotejam as pequenas fontes da infância mais perdidas ainda por minha culpa. Porque não encontrei ninguém que me dissesse que eu vivia no meio do paraíso, rodeado de anjos tão visíveis como postes telegráficos, e incapaz de encontrar a palavra que nos tornasse semelhantes à face de Deus que eles me escondiam para me ajudar a viver. Era então este o miserável segredo que me ocupou tanta noite de vigília estéril, tanta fadiga à procura do que nunca tinha perdido? Estava no paraíso, estou no paraíso, outrora, agora, mas não para sempre. O meu paraíso está pregado do exterior, como um caixão, abrindo sobre o nada como uma falésia sobre o abismo.»
Eduardo Lourenço