A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de Abril de 2009
Em “Paul Ricoeur, L’Unique et le Singulier”, entrevista de Edmond Blattchen, na colecção « Noms de Dieux » (Éditions Alice, 1999), o filósofo francês fala-nos do enigma com que a filosofia se confronta, ligado à multiplicidade dos nomes de Deus. Heráclito referia-o em ligação com o dia e a noite, o Inverno e o Verão, a guerra e a paz, a saciedade e a fome… Platão criticava os deuses de Homero, Kant demarcou-se dos clássicos em geral e Nietzsche pôs Deus em xeque, anunciando a sua morte. Paul Ricoeur (1913-2005) começa por recordar, nesta entrevista, a dialéctica entre Moisés e Aarão, e fá-lo invocando a obra de Schoenberg – onde o Deus imutável entra em tensão com os deuses múltiplos. E estamos perante o episódio do “Bezerro de ouro”. Moisés sobe à montanha, para o face a face com Deus, que o desliga do povo. Foi esse facto que perturbou o músico austríaco, na sua experiência de uma escrita musical inaudível para os outros, quando estava também atraído pelos ritmos populares. Enquanto Moisés via Deus, não via o povo. Mas Aarão estava em contacto com esse povo, que não via Deus…
Paul Ricoeur em Chatenay Malabry (Murs Blancs)
A INTERPRETAÇÃO DO « BEZERRO DE OURO» tem a ver, afinal, com as representações dos deuses orientais, vindos da Mesopotâmia. Para os judeus, porém, o Deus verdadeiro é inominável, daí apenas poder ser designado através do tetragrama YHVH, constituído por consoantes e impronunciável. Quando Moisés regressa da montanha, descobre o Bezerro de Ouro e reduz a pó as Tábuas da Lei. O que vemos então é Moisés legislador, inspirado directamente por Deus, que entra em choque com o seu povo. E é esta tensão, entre Moisés e Aarão, que inspira Schoenberg e leva ainda o filósofo a assumir um pensamento “onde a nomeação efectiva de Deus está ausente e onde Deus, como questão filosófica, fica numa posição de suspensão, que podemos designar como agnóstica” (como o filósofo reconhece em “Soi-même comme un autre”, Seuil, 1990). Há, assim, um dualismo na atitude de Paul Ricoeur: “Quando ensino filosofia, em especial na universidade pública, na universidade laica, falo para toda a gente e com argumentos acessíveis a todos. E penso que a filosofia argumenta”. Há, pois, uma preocupação de preservar a hermenêutica como factor de interpretação e de revelação, com fidelidade ao método filosófico. Não estamos, deste modo, perante uma contradição, uma vez que Ricoeur não deixa de ser crente, mesmo quando realiza a sua reflexão hermenêutica. Como o próprio confessa, não se trata de um agnosticismo fechado (ou sistemático), mas sim de uma suspensão. O crente sabe que a busca da verdade é um modo de fidelidade a Deus. Afinal, entre o Deus inominável e os nomes divinos há sempre um trabalho de pensamento. Longe de se tratar de uma atitude esquizofrénica, trata-se de uma dialéctica exigente, não redutora ou excludente, mas integradora e profundamente coerente com a atitude religiosa.
FALANDO DO SÉCULO XX, que considera um tempo terrível, Paul Ricoeur parte da interpretação de uma escultura de Henri Moore – “Projecto para um átomo” – na qual se encontra a imagem ambígua de um crânio atingido por uma bomba, que ao mesmo tempo representa um átomo. Uma descoberta científica é um sinal de progresso, mas pode trazer uma presença antecipada da morte. Assim se representam as características do século XX, desde a primeira grande guerra (na qual o pensador perdeu o pai) e a queda do muro de Berlim. O crânio atingido representa a violência e o sinal de barbárie. O átomo contém a virtualidade emancipadora da ciência e a esperança num futuro melhor para a humanidade. Mas os acontecimentos têm interpretações ambíguas e contraditórias. Os acontecimentos de Maio de 1968 (dolorosos para Paul Ricoeur e que o levaram até aos Estados Unidos) corresponderam, de acordo com o pensador, a um movimento importante, que ainda hoje causa perplexidades. A autoridade passou a ser exercida de modo diferente e depois da revolução sexual passou a haver, porventura, uma maior honestidade nas atitudes sociais e éticas. Mas (para o filósofo) há uma ambiguidade extraordinária nesse desenvolvimento, bem evidente na emergência do fenómeno da SIDA. E o certo é que as duas faces da moeda devem zser ponderadas. Ricoeur regressa, assim, rapidamente à questão filosófica. “Quanto mais compreendemos as coisas singulares, mais compreendemos Deus”. Cita Baruch Spinoza, para chegar à ideia de que “o trajecto ético é a tomada de consciência progressiva da parcela do todo que, através das paixões, e ainda pela reflexão razoável sobre as paixões, chega a qualquer coisa, que é a liberdade. As pessoas singulares insubstituíveis, cada obra de arte, que é a resposta irrepetível a um problema, e as singularidades que existem na natureza (como as paisagens) – todos esses exemplos permitem-nos compreender o que é o único e o singular, e que serve de título e de mote a esta entrevista.
O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE.
Vem à lembrança, Hans Jonas e o seu princípio da responsabilidade, projectado no futuro longínquo, como questão de sobrevivências perante as ameaças quanto ao meio ambiente e à sobrevivência planetária. O tema não podia ser mais actual. E Ricoeur cita Jonas: “Age de tal maneira que exista uma humanidade depois de ti e durante o maior tempo possível”. A frase obriga a pensar e põe-nos perante a responsabilidade de assumirmos as fragilidades que nos caracterizam e que nos podem comprometer. Não basta temer o que é provável, mas temos de estar alerta com o que é possível. Temos, pois, de considerar as ameaças concretas, querendo superá-las ou evitá-las. Quanto ao papel do filósofo, Paul Ricoeur recorda o célebre quadro de Rembrandt – “Aristóteles contemplando o busto de Homero”. Trata-se de um símbolo ou de uma metáfora sobre a empresa filosófica. Aristóteles é o filósofo que, no entanto, não começa do nada. A filosofia começa com a poesia. Daí a presença do poeta de “A Ilíada”. No entanto, Homero está representado por uma estátua, enquanto Aristóteles, o filósofo, está vivo e com uma indumentária bem actual, do tempo em que o pintor holandês faz a obra de arte. Aristóteles, porém, ao contrário do que insinua o título da obra, não contempla o poeta, toca o busto com a mão. A prosa conceptual da filosofia, representada pelo Estagirita, está, assim, em contacto com a linguagem ritmada do poema. Aristóteles não se fixa na estátua, olha outra coisa, que não é nem a poesia nem o poeta, provavelmente dirige o seu olhar para o ser, para a verdade, ou o que se queira imaginar. Contudo, ainda há um terceiro elemento na pintura: um medalhão, visível com especial atenção, representativo de Alexandre o Grande, o imperador macedónio, de que Aristóteles foi preceptor, e que nos remete para a vida política. De facto, a ética não está completa se não se projectar na política, uma vez que a comunidade só se afirma e realiza se procurar “viver bem”. A poesia, a filosofia e a política aparecem, deste modo, relacionadas entre si. A energia criativa da inovação reclama a reflexão e, por sua vez, esta leva-nos à vontade e ao desejo de viver melhor em conjunto.
DO POÉTICO AO SAGRADO.
Se quisermos encontrar uma síntese, poderemos ouvir o próprio Paul Ricoeur: “há um vínculo do poético que é o sagrado, o religioso, a palavra originária. Aí está o problema das convicções. E o problema da comunidade política é o da possibilidade de haver uma partilha da convicção, traduzindo-a na linguagem de cada um, na filosofia e na liberdade laica, mas no essencial é o poder falar de modo que todos compreendam”. Eis o enigma que fica por desenvolver. Assim, a poesia e a cultura encontram-se, a cada passo, e cabe à hermenêutica procurar os elos que relacionam ambas.
E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins