A VIDA DOS LIVROS
de 23 de Fevereiro a 1 de Março de 2009
A “Correspondência” de Eça de Queiroz, com organização e notas de A. Campos Matos (2 volumes, ed. Caminho, 2008) é um instrumento de trabalho precioso para os estudiosos, mas também uma oportunidade extraordinária para os queirozianos e para os amantes da língua portuguesa de usufruírem das melhores páginas da epistolografia nacional. As cartas que Eça trocou com os seus amigos correspondem, com efeito, à clara demonstração, se dúvidas houvesse, de que a Geração de 1870 foi das mais dotadas e influentes da história portuguesa, com uma lucidez, um sentido de humor e uma genialidade bem patentes em cada passo do diálogo que estabeleceram e que constituiu a grande mais valia da sua existência. Aliás, se podemos falar de Geração é porque os seus membros não agiram isoladamente, souberam, sim, pôr o seu enorme talento individual ao serviço de uma capacidade irrepetível para construírem em comum um momento único e poderoso, com uma fantástica influência contemporânea e posterior.
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz (1875)
ESSENCIALMENTE ÚNICO
Ao dedicar a nova reunião de cartas aos que consideram, como Jaime Batalha Reis, Eça de Queiroz como um artista “essencialmente único, absolutamente único na literatura do seu país”, o arquitecto A. Campos Matos põe a tónica no lugar especial que o romancista de “Os Maias” e os seus amigos ocupam nas letras portuguesas, projectando nas obras que subscreveram e na arte que cultivaram a força e a originalidade do grupo de que fizeram parte elementos singularíssimos, como Antero de Quental, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. A nova edição reúne todas as cartas conhecidas do romancista, desde as primeiras que em 1916 António Cabral publicou na biografia então dada à estampa. E cumpre lembrar a memória de Guilherme de Castilho, que organizou para a Imprensa Nacional uma importante edição da “Correspondência” (1983), que foi durante muito tempo uma das fontes por excelência para o conhecimento da fantástica epistolografia de José Maria Eça de Queiroz. Há muito que se encontrava esgotada a referida obra e nos últimos vinte cinco anos houve novos trabalhos e descobertas que exigiam nova reunião. Daí a importância deste labor de A. Campos Matos, que nos diz, muito justamente, das cartas queirozianas, que “viceja aí o humor, a graça, o espírito crítico e a inteligência de um epistolário excepcional, que inúmeras vezes nos surpreende pela modernidade da sua linguagem, dando-nos preciosas informações quanto à sua tão especial idiossincrasia, quanto à evolução dos seus projectos e da sua arte, quanto aos episódios da sua vida sentimental, quanto à génese das suas obras e ainda quanto àquela área, não menos importante, das suas relações com os editores e as edições”. Não se pense, porém, que o organizador se excede em adjectivos. Muitas gerações de leitores, em várias latitudes e com diferentes graus de envolvimento ou especialização, têm repetido esse fascínio singular que nos leva a confundir as fronteiras entre o registo romanesco (de Fradique Mendes, por exemplo) e o registo pessoal, de uma vida cultivada, que na prática se traduziu num mito. E o certo é que, desde a juventude de José Maria, encontramos sinais evidentes da construção de uma personagem de carne e osso, que poderia habitar entre os fantasmas da obra romanesca (o Chevalier de Queiroz coexiste com os outros eus que povoam a obra literária).
UM LONGO CAMINHO EPISTOLAR
Lembremo-nos de que desde 1916, como se disse, com António Cabral, e de 1925, com as 84 cartas publicadas por José Maria, o filho do escritor, houve 21 publicações, de ritmo e dimensão desiguais, avultando: “Eça de Queiroz Entre os Seus” (de Maria Eça de Queiroz, 1949); “Cartas de Eça de Queiroz aos Seus Editores Genelioux e Lugan, 1887-1894” (de Marcelo Caetano, 1961, com comentários valiosos “de um verdadeiro conhecedor”); “Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis: Cartas e Recordações do Seu Convívio” (de Beatriz Cinatti Batalha Reis, 1966); a citada edição de Guilherme de Castilho (1983); o volume IV das “Obras de Eça de Queiroz” da Lello (de Aníbal Pinto de Castro, 1986); diversas publicações de Carlos Reis, Isabel de Faria e Albuquerque, Beatriz Berrini; e a publicação de 863 cartas pela editora Nova Aguilar em 2000 (organizadas por Beatriz Berrini). A. Campos Matos partiu desta última publicação, compulsou cuidadosamente os originais e organizou uma obra clara, acessível e rigorosa, tendo optado (e bem) por corrigir e actualizar a ortografia das cartas, sem emendar os deslizes de sintaxe. Foi ainda transcrita a correspondência destinada aos Ministério dos Negócios Estrangeiros, o que assume indiscutível interesse. Em suma, estamos perante 898 cartas, entre as quais duas inéditas (ao Visconde de Pernes, Carlos Augusto Bon de Sousa e a Alfredo Keil) e duas pouco conhecidas (a Ernesto Chardron e Ramalho Ortigão). Em relação à publicação de Guilherme de Castilho, temos agora mais 350 cartas e por comparação com a edição da Nova Aguilar mais 35.
DELICIOSO ACERVO
É difícil fazer uma escolha de algumas cartas mais significativas. Todas são importantes, pelos pormenores que revelam e pela vida que traduzem. 87 são os destinatários conhecidos. Partindo do próprio entusiasmo do organizador, amante genuíno e inteligente da obra queiroziana, podemos referir alguns exemplos significativos. Comece-se pela carta de 1867 a Carlos Mayer, publicada nas “Prosas Bárbaras” (“Lembras-te do teu quarto na Rua do Forno?”); continue-se pela de 1873 para Ramalho, escrita de Montreal sobre as impressões americanas (“New York não tem civilização: a civilização não é ter uma máquina para tudo”). Há a de 1877, onde invectiva Pinheiro Chagas (“Para que disse Você no seu jornal que o Primo Basílio era publicado às folhas?”); a de 1878 de novo para Ramalho (“Se o ‘Primo Basílio’ se vendeu – por que se não há-de vender a ‘Batalha do Caia’?”); ou a de 1880 ainda para o inefável Chagas (“você… sabe perfeitamente que o Sr. Martins ou o Sr. Herculano teriam ido apodrecer para uma masmorra”, se vivessem no século XVIII). Lembre-se ainda a de 1887 para Camilo Castelo Branco, que nunca foi enviada, talvez por receio da reacção do mestre de Seide, tal a rispidez, pela qual Eça procurava desmentir a acusação errónea de que “eu e os meus amigos implicamos consigo”. Há ainda outra, importante, de 1888, escrita de Bristol para Fialho de Almeida (“diz V. que os meus personagens são copiados uns dos outros”) e que bem sabemos não convenceu o crítico. Não pode passar em claro a epístola do mesmo ano, já de Paris, relatando a Oliveira Martins o hilariante e grotesco episódio da Viscondessa de Faria. E merece especial destaque a longa missiva de 1889, para Carlos Lobo d’Ávila, sobre as fantasiosas elocubrações de Pinheiro Chagas a propósito das falsas semelhanças entre Bulhão Pato e Tomás de Alencar. Todos nos lembramos da reacção forte de Eça de Queiroz que o levou a afirmar, nesta carta ao director do “Tempo”: “o meu intuito final com esta carta é apelar para a conhecida cortesia do autor da ‘Sátira’, e rogar-lhe o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem”. A 2 de Julho de 1889, o escritor, na pele de pedinchão, solicita ao Ministro Henrique Barros Gomes reforço de subsídio por causa da Exposição Universal de 1889. Num fragmento agora integrado pela primeira vez na correspondência (conhecido através das cartas de Eça à mulher) e dirigido a Ramalho Ortigão podemos usufruir da finíssima ironia suscitada por um retrato que este enviou, de corpo inteiro e em pose, com farda de académico, com a grã-cruz de Isabel – “l’oncle Ramalho était bien grand et bien fort et avait un bien beau manteau”; “quer V. queira, quer não (e suponho que quer) V. foi sempre um espanhol”. E como não aduzir, alfim, a deliciosíssima e longa carta de Salamanca e Paris, de 1899, ao Conde de Arnoso onde o escritor diz gostosamente: “Essa adorável casa de S. Domingos à Lapa, apesar do seu santo nome, era a diabólica Ilha dos Lotófagos, onde, depois de comer a flor de Loto (ponhamos o bacalhau assado) a gente tudo esquecia envolta em beatitude. Em torno de mim boiavam Sereias”…
Haverá dúvidas sobre o carácter mágico e encantatório de Eça de Queiroz?
Guilherme d’Oliveira Martins
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