A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O livro “Ensaios e Estudos – Uma Maneira de Pensar” (volume I) de Vitorino Magalhães Godinho (Sá da Costa Editora, 2009) corresponde não tanto ao início de uma reedição dos Ensaios do autor, dados à estampa nos anos sessenta e setenta, mas a uma reponderação da obra de há quarenta anos, mantendo-se o que foi considerado com actualidade e juntando-se textos mais recentes. Em bom rigor estamos, assim, perante obra nova, pela frescura das ideias que o professor nos apresenta e pela preocupação (bem sucedida) de dar ao público instrumentos que permitam pensar e compreender a profunda crise estrutural com que nos defrontamos presentemente. Eis por que razão ao lermos ou relermos estes Ensaios temos a sensação (e a certeza) de que eles permitem aos estudiosos contemporâneos (investigadores, professores, estudantes) a compreensão da História Económica em estreita ligação com a Ciência Económica, numa perspectiva de longo prazo.

A VIDA DOS LIVROS
de 16 a 22 de Fevereiro de 2009


O livro “Ensaios e Estudos – Uma Maneira de Pensar” (volume I) de Vitorino Magalhães Godinho (Sá da Costa Editora, 2009) corresponde não tanto ao início de uma reedição dos Ensaios do autor, dados à estampa nos anos sessenta e setenta, mas a uma reponderação da obra de há quarenta anos, mantendo-se o que foi considerado com actualidade e juntando-se textos mais recentes. Em bom rigor estamos, assim, perante obra nova, pela frescura das ideias que o professor nos apresenta e pela preocupação (bem sucedida) de dar ao público instrumentos que permitam pensar e compreender a profunda crise estrutural com que nos defrontamos presentemente. Eis por que razão ao lermos ou relermos estes Ensaios temos a sensação (e a certeza) de que eles permitem aos estudiosos contemporâneos (investigadores, professores, estudantes) a compreensão da História Económica em estreita ligação com a Ciência Económica, numa perspectiva de longo prazo.



PEDAGOGO, INVESTIGADOR E CIDADÃO
O Professor Vitorino Magalhães Godinho é uma figura maior da investigação mundial sobre a Economia dos Descobrimentos. Não admira, por isso, que os seus textos mais significativos possuam uma pertinência e uma lucidez que atraem os estudiosos e quantos desejem, com seriedade e rigor, conhecer as condições económicas e sociais que marcaram a História mundial da primeira globalização. Licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o mestre seria afastado duas vezes do ensino pelo Estado Novo, e duas vezes esteve exilado em Paris. Aí se diplomou em Ciências Económicas e Sociais pela École des Hautes Études, doutorando-se em Letras na Sorbonne. Foi investigador do Centre National de Recherche Scientifique, desenvolveu trabalhos na École Pratique des Hautes Études e leccionou na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Clermont-Ferrand. Cidadão empenhado, foi sempre um activo lutador pela liberdade de espírito e pelo primado do pensar. Foi Ministro da Educação e da Cultura (em 74), Director da Biblioteca Nacional (1984) e fundador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Na sua bibliografia vastíssima avultam: “Prix et Monnaie au Portugal (1750-1850)” (1955), “O Socialismo do Futuro na Península” (1970), “Estrutura Antiga da Antiga Sociedade Portuguesa” (1971), “A Economia dos Descobrimentos Henriquinos” (1962, obra recentemente revista e aumentada sob o título “A Expansão Quatrocentista Portuguesa”), “Os Descobrimentos e a Economia Mundial” (1983-84, 4 volumes), “Portugal: A Emergência de Uma Nação, das Raízes a 1480” (2004) e “Vitorino Henriques Godinho – Pátria e República” (2005).


NO VOLUME AGORA DADO À ESTAMPA reúnem-se quinze ensaios sobre temas diversos, onde o professor, o investigador, o cidadão estuda e reflecte sobre a história portuguesa, sobre a necessidade de pensar e sobre a importância das ciências humanas, cuja subalternização está também na raiz da actual crise. Sobre a concepção da História de Portugal propõe a consideração de uma periodização, não assente em datas, mas referenciada à evolução das estruturas económico-sociais. Ao reflectir sobre Portugal e os portugueses, diz-nos que “somos um povo sem utopias – e que a única grande utopia é a Ilha dos Amores de ‘Os Lusíadas’; mas no resto ficámos mais parte do mito da Idade de Ouro no passado do que de uma projecção no futuro”. Sobre a Identidade Nacional, fala-nos de um sentido do humanismo universalizante para construir a memória da nação possível. Na procura dos portugueses por si próprios (textos publicados no JL em 2008) aponta uma procura ancestral de nós mesmos e da dúvida sobre o encontro desejado. Sobre a formação do Estado e as Finanças Públicas, aborda as razões pelas quais a prevalência financeira e fiscal do clero e da alta nobreza gerou atraso na construção capitalista. Ao falar da “constante estrutural da sociedade portuguesa” o autor trata do tema momentoso da emigração dos séculos XV a XX. A propósito dos Painéis de Nuno Gonçalves, aborda o tema fulcral (qual o significado dos quadros? Em vez de: quem lá está?) e considera que os painéis “simbolizam os momentos essenciais destes conturbados tempos, mostrando a união da nação em torno do poder régio, assentando a legalidade do funcionamento da res publica”. E que momentos são esses, definidores da atitude e da simbologia? A entrega do regimento do Reino pelo infante D. Pedro ao seu legítimo titular e respectiva justificação do exercício do poder e a sua recepção por D. Afonso V com o juramento tradicional de cumprir as normas e respeitar os foros de vassalos e súbditos. Seguem-se quatro textos fundamentais sobre o esboço do modelo económico nos séculos XV e XVI, quer a partir de “Entender la praxis de los negocios” (numa análise muito interessante sobre a formação da ciência económica, num contexto de secularização, a partir da diversidade e complexidade de factores relevantes na evolução de quinhentos), quer na análise da viragem mundial de 1517-1524, da afirmação dos impérios otomano e de Carlos V e das suas repercussões no império português, quer ainda na consideração da revolução dos preços e das flutuações económicas no século XVI. As séries estatísticas portuguesas ao longo desse século são um contributo essencial para o estudo do período, permitindo ir além de considerações gerais e fazendo entender o que Garcia de Resende exprimia ao dizer: “vemos o pão mais valer, / vemos tudo levantar”. O caso de Veneza e a visão das “dimensões de uma presença frente a um mundo tão mudado” permitem-nos perceber uma encruzilhada em que a cultura e a economia revelam o surgimento, na viragem de quatrocentos para quinhentos, de um novo mundo de múltiplas influências. Os três últimos ensaios tratam da construção de modelos para as economias pré-estatísticas, das vicissitudes do período português da União dinástica à Restauração (com “estranhas simbioses na guerra, surdas lutas na paz, e as classes sempre divididas e com posições políticas ambíguas, se não contraditórias”) e da figura, admirada pelo historiador, do cientista e cidadão Alexandre Herculano – “que utiliza a História para explicar os problemas da sua pátria e construir o porvir”, sendo Vale de Lobos “a luta entre o exílio e a ânsia de intervenção”.


UMA OBRA PARA OS DIAS DE HOJE
Sendo em grande parte o retomar de textos já conhecidos e publicados, agora cuidadosamente relidos, a obra agora publicada surpreende pela actualidade e pela lucidez, bem patentes no Prefácio, onde se fala das raízes da actual crise financeira com pertinência e correcção: “Não é com taxas de juro e injecções de dinheiro (diz-nos) que se resolve a depressão estrutural. Infelizmente o desenrolar da crise demonstra até que ponto se desistiu de pensar e nos embalámos no soletrado catecismo, conformados com algumas entorses”. O défice das ciências humanas é apontado como um sintoma de défice de pensar e de ausência de sentido crítico e de ânimo reformador. “É imperioso reler os clássicos (insiste), o que não significa ficar prisioneiro do que disseram – seria atraiçoá-los – mas como impulso para rasgarmos novas perspectivas”. O Professor V.M. Godinho propõe, no fundo, “o salto da acumulação de informação e do não pensar para a aventura da problematização e do pensar”. Que repercussões tem essa atitude ética, cultural e cívica na vida económica e financeira? “É indispensável, é urgente construir a Europa, o que não está ao alcance dos actuais governos e elites, que dela só têm uma noção de mercearia; é indispensável, é urgente que os cidadãos decidam se querem manter a estrutura económica actual, que utiliza o público como mero instrumento do privado, ou escolhem uma economia democrática socialista, um leque aberto de possibilidades futuras, com uma política de planeamento e médio e longo prazo e um sector privado que reconstitua o mercado (o tal mercado que há muito não existe, pois impera a lei dos oligopólios e a glutonice dos lucros desenfreados)”. É, afinal, a duração e o longo prazo que o mestre continua a pôr em primeiro lugar, nesta obra que muito nos estimula, em nome do desenvolvimento e da capacidade de pensar o futuro.


Guilherme d’Oliveira Martins

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