A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Livros com Ideias Dentro” de António Rego Chaves (Campo das Letras, 2008) é um percurso que nos revela um conjunto diversificado, mas de grande interesse, de obras e de autores. Com grande cuidado na escolha dos livros e no tratamento das ideias que estes contêm, o autor organizou uma obra de qualidade, que nos permite ver pelos olhos de quem nos conduz um verdadeiro caleidoscópio que nos faz compreender melhor o mundo em que vivemos. Trata-se de textos jornalísticos de uma grande sensibilidade e exigência, que correspondem a uma concepção de elevado sentido cívico e ético sobre o serviço público cultural do jornalista, o que é de realçar.

A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de Janeiro de 2009.



“Livros com Ideias Dentro” de António Rego Chaves (Campo das Letras, 2008) é um percurso que nos revela um conjunto diversificado, mas de grande interesse, de obras e de autores. Com grande cuidado na escolha dos livros e no tratamento das ideias que estes contêm, o autor organizou uma obra de qualidade, que nos permite ver pelos olhos de quem nos conduz um verdadeiro caleidoscópio que nos faz compreender melhor o mundo em que vivemos. Trata-se de textos jornalísticos de uma grande sensibilidade e exigência, que correspondem a uma concepção de elevado sentido cívico e ético sobre o serviço público cultural do jornalista, o que é de realçar.


 
“Le Penseur” de Rodin.


QUASE COMO NUM PEQUENO DICIONÁRIO, o jornalista (que é sobretudo ensaísta) apresenta-nos os diversos livros analisados por ordem alfabética de autores, o que nos permite construirmos o nosso próprio percurso de leitura ou seguir, de modo aleatório, sem continuidade cronológica, as obras que nos são propostas. Ambos os caminhos reservam-nos um contacto muito estimulante com as reflexões feitas. De facto, estamos perante obra de ideias, que estimula o sentido crítico, o que é uma virtude que tem de ser elogiada. Logo de início, lemos sobre o Abbé Pierre: “Não foi o único, mas poderá ter sido, no século XX, um dos raros ‘santos’ cristãos”. A afirmação dá o tom do livro. António Rego Chaves nunca deixa o leitor em descanso ou em atitude conformista. Gosta de desinquietar, mobilizando os leitores para a sua atitude de agitar águas e de lançar desafios inteligentes. E nesse primeiro texto, ressalta a afirmação do próprio Abade: “A luta pelo meu pão pode ser materialismo; mas a luta pelo pão dos outros já é espiritualismo”. De facto, num tempo em que o dinheiro faz correr todo o mundo, o sacerdote francês foi sempre motivado por esse estranho mas apaixonante desafio que é o Amor. E a análise do livro “Porquê, meu Deus?”, de um “santo” que era cristão, é centrada, no essencial, nessa procura e nesse constante pôr em causa das considerações redutoras que, às vezes, em nome da pureza dos princípios, escondem a desconfiança e a idolatria. Aliás, logo a seguir fala de Amos Oz e de “Contra o Fanatismo”. E Rego Chaves põe especial ênfase na resposta à pergunta: qual a essência do fanatismo? Trata-se do “desejo de obrigar os outros a mudar” – diz Amos Oz. (…) “O fanático é um grande altruísta. Está mais interessado nos outros do que em si próprio”. (…) O fanático morre de amores pelo outro. Das duas uma: ou nos deita os braços ao pescoço porque nos ama de verdade, ou se atira à nossa garganta no caso de sermos irrecuperáveis”… E depois António Sérgio vem-nos alertar (sobre a inexistência de uma Civilização Cristã) para que “não seria possível servir a dois senhores, Deus e o dinheiro. Uma forma de civilização caracterizada pela competição e pela guerra entre os homens para chamarem a si o dinheiro não seria digna de ser classificada como cristã”. De facto, ao apresentar-nos um conjunto de comentários a livros, publicados no “Jornal de Negócios”, Rego Chaves vai pondo pedras no caminho que assinalam estimulantes sentidos de responsabilidade crítica.
OS TEMAS SUCEDEM-SE. Hannah Arendt, Beauvoir, Camus, Celan, Heidegger, Jünger, Küng, Hobsbawm, Malraux, Marx, Sartre, Simone Weil e Wittgenstein… Eis um percurso não exautivo. O totalitarismo de Arendt fica subalternizado perante a deslumbrante magia de “A Vida do Espírito”. Sobre Simone de Beauvoir e Sartre fala-se das polémicas do tempo e de estranhas reacções a “Le Deuxième Sexe” e ao seu sentido emancipador, que levariam Jean-Marie Domenach a dizer “é necessário não impor ao cristianismo os óculos da moral burguesa”. E Jean Paul Sartre aparece-nos a afirmar não só que foi “conduzido à descrença, não pelo conflito dos dogmas, mas pela indiferença dos meus avós”, mas também que “a esperança é a relação do homem com o seu fim, relação que existe mesmo se o fim não é atingido”. Camus é visto pelos olhos de uma decepção, a propósito de um número do “Magazine Littéraire”, onde algumas simplificações não retratam por inteiro o cidadão – correndo-se o risco de cair no anacronismo histórico. O diálogo Celan-Heidegger, de um poeta e de um filósofo, revela-nos o claro e o escuro de uma relação equívoca, em que o poeta romeno alimenta sentimentos contraditórios a propósito do pensador, que transportou sempre consigo a terrível contradição de ter contribuído para a “malignidade do mal” nazi e de ser um dos filósofos mais estimulantes do seu século. E uma última carta, que teria ficado por enviar, dá bem conta desse paradoxo de admiração e repulsa: “pelo vosso comportamento enfraqueceis de maneira decisiva o poético e ouso suspeitá-lo o filosófico na vontade séria de responsabilidade que pertence a ambos”… Ernst Jünger é um curioso paradigma do século XX. Indiscutivelmente um grande escritor, faz-se no cadinho de um século de belicismo e de violência. A sua originalidade está na tentativa de “elevar a literatura à categoria de experiência de vida”. Diz-nos, assim, que “como instinto sexual, a guerra não é instituída pelo homem, é lei da natureza, e por isso nunca poderemos fugir do seu império”. E Rego Chaves comenta: “dir-se-ia que o fantasma de Nietzsche, enfim reconciliado com o de Wagner, tomara Bayreuth de assalto para a transformar em capital da ópera bufa”. Por outro lado, a coerência de Hans Küng é recordada na sentença: “quando a Igreja não realiza a causa de Jesus Cristo ou a distorce, peca contra o seu próprio ser e perde esse ser”. Eric Hobsbawm, historiador marxista, cujos brilhantismo e força intuitiva servem para ultrapassar quaisquer barreiras ideológicas para os seus leitores, surge na força da sua persistência: “Não devemos depor as armas, por mais ingratos que os tempos de mostrem. É necessário continuar a denunciar e a combater a injustiça social. Se nos limitarmos a deixá-lo entregue a si próprio, o mundo não se tornará automaticamente melhor”. A propósito de André Malraux, o autor fala-nos de uma leviana idiotice, de uma profecia desmentida pelo próprio: “o século XX será religioso ou não será”. Nunca o disse, e a citação só poderia fazê-la quem ignorasse o homem desolado do fim da vida, para quem, apesar de perseguido pelos espectros de Pascal, de Kierkegaard e de Dostoievsi, “o incognoscível absoluto não é um domínio de dúvida; é tão imperioso como as fés sucessivas da humanidade”. Sobre Karl Marx, António Rego Chaves fala do desconhecido – que “não era determinista, nem inimigo das liberdades individuais, nem da propriedade privada, nem da fé e da religião”. Estamos perante outro lado do problema quando se trata de analisar (à luz quiçá cartesiana) o autor dos “Manuscritos de 1844” e do “Manifesto do Partido Comunista”, e é sempre fundamental desmontar as ideias falsamente feitas e condicionadas pelas próprias vicissitudes da história. Com “A Gravidade e a Graça” de Simone Weil, o autor cita: “o mundo tem necessidade de santos que tenham génio, tal como uma cidade com peste tem necessidade de médicos”. E ARC comenta: “o mesmo é dizer que a força da gravidade (natureza) precisa de ser atraída, elevada e transfigurada pela luz da graça, do sobrenatural, da caridade”…
OS SILÊNCIOS E O GRITO – “Os Cadernos” de Wittgenstein, dos anos de 1914 a 1916 constituem motivo para uma reflexão especial, na linha do que Rego Chaves já tem trabalhado. O percurso do pensador austríaco não é isento de dúvidas, hesitações, perplexidades e aproveitamentos. E, como afirmou, Eckard Nordhofen: “A velha disputa sobre o famoso silêncio que aparece no final do Tractatus é um silêncio sobre algo ou é um silêncio sobre nada, ficou sem dúvida resolvida. É um silêncio sobre algo, sobre o mais importante, sobre aquilo que não se deixa dizer. É teologia negativa no seu grau mais puro”. Ou não fosse a obra um constante apelo a ler mais, para tentar compreender melhor!
                                                          Guilherme d’Oliveira Martins

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