CULTURA E LIBERDADE (II)
Por João Bénard da Costa
1. A propósito de um colóquio comemorativo, recordei na última crónica a história da “filial” portuguesa do Congrès pour la Liberté de la Culture, que começou a agir nos escritórios da então Moraes Editora, há quase 40 anos, em Dezembro de 1965. Contei como me achei metido nessa história e como, um ano depois da fundação, fui investido como 11.º membro da agremiação e secretário executivo dela. Em Dezembro de 1966, começaram as minhas frequentes visitas a Paris. O hotel era sempre o mesmo e chamava-se (chama-se?) du Levant, numa pequena paralela do Boulevard Saint Michel – a Rue de la Harpe – que há 40 anos (muito antes da recuperação do “quartier”) tresandava a hotéis de duas estrelas e restaurantes de uma, apoiados no gótico apastichado da Igreja de Saint-Sèverin (mas com magnífica reputação litúrgica) e na escancarada abertura da livraria La Joie de Lire, lugar de culto para o esquerdismo mais extremo (que levou à falência o proprietário, tomando demasiado à letra o célebre slogan “la propriété est un vol”). De manhã e de tarde, ia para o tal andar do Boulevard Haussmann (recorram à crónica anterior) trabalhar com Roselyne Chenu. À noite, não as tinha que chegassem para os muitos jantares dos muitos amigos exilados em Paris, ou gozando de bolsas do “bom pai arménio”, como um dia lhe chamou João César Monteiro.
De manhã e de tarde retemperava a cultura em banhos de liberdade. À noite, iniciava-me nas ruelas da clandestinidade, política e outras. E como eu já tinha esta bendita mania cinéfila, esgueirava-me quando podia para os últimos Godard, os últimos Buñuel, os últimos Bergman e os últimos Fuller, incorrendo em iras lusitanas por trocar companhia de exilados valentes pela do burro de Bresson (Au Hasard Balthazar) como juro que aconteceu.
2. Estava eu muito aconchegado a preparar O Tempo e o Modo de 67 e o lançamento de actividades do Comité Português (abertura de delegações no Porto e em Coimbra, apoios para futuros génios nos primeiros passos na escada da glória, preparação de um número especial sobre O Tempo e o Modo de Espanha e outras mais coisas que não recordo) chegou a terrível notícia. Uma revista americana (de esquerda independente) anunciara que entre os financiadores do Congrès pour la Liberté de la Culture se encontravam duas fundações que canalizavam dinheiro da CIA. Hoje, a CIA já não faz muita impressão a ninguém, ou, vá lá, faz a mesma impressão que qualquer poderosíssimo serviço secreto. Mas em 1966 – ano II da era Johnson, com a Guerra do Vietname em apogeu, os embargos na América Latina – dizer CIA junto de alguém de esquerda – e, uns mais, outros menos, todos os éramos no comité português do Comité – era propor a representação do Marat-Sade (peça dessa altura) num convento de doroteias. Todos sentimos as nossas honras manchadas, alguns com choros e ranger de dentes, outros recordando mais cinicamente que o dinheiro não tem cor.
Pierre Emmanuel chamou-me a Paris. Oito anos antes, Agustina Bessa-Luís descrevera-o bem na Embaixada a Calígula, ela que foi a primeira portuguesa a participar numa actividade do Congrès, ainda nós Congrès não sabíamos o que fosse, e representou Portugal num famoso encontro em Lourmarin, na Provença. Escreveu ela dele: “A sua vivacidade ressurge todas as manhãs, como uma fénix, e ele mostra-se sempre mais cordial e esperançado nas primeiras horas do dia; depois decai, esmorece, demite-se lentamente e o seu rosto triste de poeta ganha ascendente sobre o espírito entusiasta e sensual.” Se isto era em 1959 e em dias de júbilo, oito anos depois, já dobrada a cinquentena, o esmorecimento e o abatimento eram muito mais pronunciados. Pior só o vi, quando meses depois ele veio jantar a minha casa de Sintra, num desses jantares que nunca começavam antes das 10 e meia, e rugiu do maple do canto: “Cette heure de diner me rend fou!”
Abatido, o poeta comunicou-me a mim e ao meu colega espanhol que o Congrès se autodissolvera. Dois elementos do pessoal – os únicos que sabiam da história da CIA – foram despedidos. Mas ele – a tal imagem da fénix – não desistia. Ia procurar novos financiamentos. Bem depressa nos procuraria.
E foi depressa. Se a dissolução parisiense se deu nos idos de Março (o tempo de me deixar passar a Páscoa em Lovaina e conhecer a Maria Belo) em Maio Pierre Emmanuel batia-nos à porta. Em vez do Congrès, nasceria a Association Internationale pour la Liberté de la Culture. Exclusiva financiadora: a Fundação Ford. Um comité director, presidido pelo célebre historiador Allan Bullock, e uma direcção executiva dirigida pelo americano Shepard Stone e com Pierre Emmanuel nas mesmas funções executivas. Mais: Pierre Emmanuel convidou Lindley Cintra para membro do Comité Director, o que dava a um português lugar máximo na hierarquia da nova orgânica.
Este passo de magia acalmou toda a gente. Mesmo os mais exasperados recuperaram confiança. Fora-se a CIA, vinha a Ford. Da Comissão portuguesa ninguém saiu e entraram mais sete nos anos seguintes.
Mas o ambiente toldou-se de novo um pouco, num jantar de despedida no Grémio Literário e em que, além de vários membros do Comité Português, me recordo das presenças de Mário Soares e de Raul Rego.
Alguém comparou fascismo e comunismo. Nessa altura, em Portugal, comparações dessas não se faziam em jantares de esquerda. Mas Pierre Emamnuel foi mais longe. Portugal era uma ditadura, mas também era verdade que estavam ali dez portugueses (ou mais) em lugar público a dissertar livremente sobre os malefícios do regime. Contou então – nunca o esqueci – o seu encontro em Moscovo com Nadejda Mandelstam, a viúva de Osip, o genial poeta russo morto em 1938. Ainda não tinham sido publicadas no Ocidente as memórias dela e portanto ouvimos, pela primeira vez, naquela noite, contar a história da mulher que decorou a poesia do marido para a poder transmitir. Ainda me lembro de ter objectado que, por maiores que fossem os crimes do comunismo, o eram em nome de amanhãs igualitários, de ideias puras, o que não sucedia no fascismo e aparentados. Pierre Emmanuel respondeu-me: “Hitler também prometeu para daqui a mil anos uma raça de homens perfeitos.” No final da noite, alguns arrumavam o caso dizendo que o homem (antigo resistente) era bem reaccionário. Outros estavam mais inquietos.
3. A nova Associação tomou forma jurídica em Julho de 1967 e de novo eu fui até Paris. Dessa vez, não ia só para assistir a uma génese. Alguns contactos de amigos próximos com o PC português conduziram-me a uma entrevista tão arriscada quanto ambicionada: encontrar-me pessoalmente com Álvaro Cunhal.
Levava uma carta. Tanto a disfarcei e escondi que, na tarde do encontro, não a consegui encontrar no meu quarto do Hotel du Levant. Já a desfazer-me em suores frios (convencido que alguém ma roubara) meti-me debaixo da cama à procura e, para ver melhor, acendi um fósforo. Quando ia desistir, senti um calor enorme. A chama pegara-se aos lençóis e só fui a tempo de os atirar pela janela fora, que felizmente dava para um saguão. Inventei que adormecera a fumar e paguei por bom preço lençóis de muito mau pano.
À hora combinada, tentando disfarçar o nervosismo, encontrei-me com o guia. Percebeu a perca. “Quando se vem de Portugal, todo o cuidado é pouco.” Depois meteu-me num carro de estores corridos, ou vidros fumados, ou seja o que for, que nada me deixava ver de lá para fora. Ainda hoje, sou incapaz de dizer em que zona de Paris, ou muito menos em que rua, Cunhal se albergava. Lembro-me, sim, da fria sala, com móveis de casa de comarca, em que me recebeu e da conversa que tivemos. Mas não houve amor à primeira vista. Nem à segunda, quando, como já contei uma vez, passei, com ele e com outros, três dias algures numa mansão de Borgonha, no ano seguinte, ano de Praga e ano de Maio.
4. Fosse pelo fogo, fosse pela corrida de carro, fosse pelo gelo do senhor, ficou-me estranha impressão desse dia de 67 em Paris. E dei comigo a pensar que, enquanto se fazia todo aquele barulho por uma eventual mãozinha de dólares no saco de uma Associação que lutava, em Portugal como na Hungria, em Espanha como na Checoslováquia, pela cultura e pela liberdade, dezenas (ou centenas) de intelectuais ilustres participavam em congressos, reuniões ou conferências a que os fundos do KGB eram tudo menos alheios.
Em Portugal, a nossa acção, entre 65 e 74, beneficiou Lopes-Graça, Giacometti, ou Armando de Castro, e nunca ninguém veio de Paris deter-nos a mão que apoiava intelectuais comunistas. Em 68, apoiámos “extremistas” como Pacheco Pereira ou Manuel de Lucena e até Jaime Gama e Alfredo Barroso receberam uma pequena soma para preparar uma manifestação contra a guerra no Vietname, em frente à embaixada americana. Ou seja, fomos livres para fazer o que quisemos fazer, ou o que a maioria do Comité Português achou que se devia fazer. Mas, antes e depois do 25 de Abril, ouvi rosnar ou vieram dizer-me que havia quem rosnasse que eu era um homem da CIA. Não teve quaisquer consequências e, se tive a fama, nunca tive o proveito. Mas se Portugal se tivesse juntado em 1975 ao bloco das democracias populares, eu teria só rido quando me viessem perguntar pela história da CIA? Por muito menos do que isso, milhares ou milhões acabaram na Sibéria. Que me teria adiantado jurar que acreditava combater pela liberdade e pela cultura? Com papas e bolos…
Nem liberdade nem cultura foram, alguma vez, valores prezados pela vanguarda do proletariado, ou pelos seus supostos representantes.
(3 de Julho 2005 in PÚBLICO)