A VIDA DOS LIVROS
de 5 a 11 de Janeiro de 2009
Bom Ano! Começamos com Elias Canetti (1905-1994), Prémio Nobel da Literatura de 1981, escritor cosmopolita, búlgaro de origem sefardita, autor de obra muito vasta e diversificada e analista arguto da sociedade do século XX e dos fenómenos da massificação e da cegueira do anonimato. Acaba de sair em português “A Língua posta a salvo – História de uma juventude” (tradução de Maria Hermínia Brandão, Campo das Letras, 2008). É o primeiro livro da trilogia autobiográfica de que fazem parte “The Fackel im Ohr (1921-1931)” (de 1980, “The Torch in my Ear”), e “Augenspiel (1931-1937)” (de 1985, “The Play of the Eyes”). Este volume (“Die Gerettete Zungue”, de 1977, “The Tongue set Free”) abrange a infância e juventude até 1921 e é uma demonstração essencial da força de um humanismo de vistas largas que foi característica comum a Kafka, Mann, Musil, Broch, ou Benjamin, num tempo de profundas angústias, incertezas e perplexidades.
UMA VIDA NÓMADA
Elias Canetti nasceu numa encruzilhada de línguas e de culturas, no seio de uma família de judeus de origem hispânica, para quem a língua materna era o ladino, isto é, um romance da Península Ibérica. No entanto, na cidade onde veio ao mundo, viviam pessoas de muitas origens, pelo que era comum ouvir num só dia sete ou oito línguas diferentes… Nos passos seguidos nesta obra, acompanhamos a infância no hoje território búlgaro, então Império Austro-húngaro, as estadas com a família em Inglaterra e na Suiça, e em cada um desses episódios sente-se o adensar das incertezas e das ameaças, que servirão de pano de fundo às origens da Primeira Guerra Mundial, gerando depois a tragédia da Segunda Grande Guerra. Essas circunstâncias obrigam o pensador a interrogar-se sobre as consequências dos acontecimentos e da mentalidade que presencia. E o pensamento e a reflexão de Canetti são de uma actualidade e pertinência tais que nos permitem ver melhor o tempo que viveu. Mas, para entender o percurso riquíssimo e o talento do escritor, é preciso ler a chave das suas origens, compreendendo aí a razão de ser de muitas intuições e a força da tradição aberta e pluralista de que parte. Tudo começa nas margens do Danúbio, em Rutschuk, de 1905 a 1911, continuando em Manchester, de 1911 a 1913, entre tapetes e livros, sob a invocação alegre do pai, na companhia das “Mil e Uma Noites” e dos heróis da literatura, mas também, depois da morte do pai, com o assumir junto da mãe da qualidade de “filho crescido” incumbido da missão de consolá-la do desgosto. A memória da leitura, como acto insaciável, vem-lhe do pai, que lhe dava a matéria-prima para alimentar a sua fulgurante imaginação – Grimm, Daniel Defoe, Jonathan Swift, Shakespeare, Cervantes, Dante… E não era só a leitura que importava, era também o culto das línguas e da comunicação – o inglês, que o pai procurava cultivar com perfeição, o alemão usado em casa, o ladino do dia a dia. A morte inesperada do pai, que era o seu ídolo, como que fulminado por um raio, tinha trinta e um anos e o filho apenas sete, foi um choque terrível para o filho. Elias fala do efeito de uma notícia de jornal relatando o início das hostilidades nos Balcãs, sabendo o pai que isso iria gerar um conflito de proporções inauditas, como de facto veio a acontecer… Canetti nunca esqueceria o drama íntimo dessa ausência prematura do pai. Em Viena, onde vive de 1913 a 1916, sente o início de um outro drama, que o marcará profundamente. É aqui que conta o episódio do anúncio do rebentar da guerra, no parque das termas em Baden, próximo da capital do império. Elias e os irmãos eram conhecidos como se fossem ingleses, por falarem e se comportarem como súbditos de Sua Majestade num meio profundamente hostil. Nesse dia, a ingenuidade de crianças levou-os a entoar o “God Save de King”, para escândalo dos circunstantes, no momento em que alguém anunciava a declaração de guerra. O resultado não se fez esperar: “De repente comecei a ver à minha volta rostos desfigurados de fúria, e mãos e braços que desataram a bater-me. Mesmo os meus irmãos, até o mais pequeno, o Georg, apanharam com algumas das pancadas que me eram dirigidas a mim, o de nove anos”. Só a determinação da mãe, impondo-se como uma vienense, pôde salvá-los daquele transe de ódio e de fúria das massas descontroladas. Nunca Elias Canetti esqueceria esse episódio pela vida fora. E durante a guerra foi sempre, no íntimo, partidário determinado da causa dos ingleses, apesar de ser obrigado obviamente a dissimular essa preferência.
CONTRA A GUERRA BÁRBARA
Em Zurique – Rua Scheuchzer, entre 1916 e 1919, as coisas mudam, Elias sente que está numa cidade civilizada, onde se pode falar, o que não acontecia em Viena. Afinal, “era possível libertarmo-nos de um imperador, uma pessoa tinha de lutar pela sua liberdade…”. Mesmo assim, passa por um contratempo escolar, uma vez que tem de se inscrever de novo no ensino primário, já que não são abertas excepções pelo facto de estar dois anos mais adiantado no ensino austríaco. Depressa procura ver o lado bom da coisa, entusiasma-se pela história grega e pela história suiça, como relatos de liberdade. Ouve falar em casa de Tolstoi e da aversão deste à guerra e à violência. Da mãe recebe uma total animosidade contra a guerra e um desejo íntimo de que o conflito termine o mais rapidamente possível, como gigantesco homicídio que é. Num café de Zurique a mãe mostra-lhe o crânio enorme de um homem sentado junto de uma janela: “Olha bem esse aí. É Lenine. Ainda vais ouvir falar dele”… Por fim, guerra termina e a profecia da mãe cumpre-se. Canetti é um defensor dos 14 pontos do Presidente Wilson. “Mas a partir do colapso das potências centrais (diz-nos) eu voltara as costas aos vencedores, já vem dessa altura a minha antipatia pelos vencedores, e quando vi que os alemães não estavam a ser tratados como Wilson tinha prometido passei-me para o lado deles”. Entre 1919 e 1921, na etapa final deste primeiro volume de memórias, Canetti continua em Zurique, mas, separa-se da mãe e dos irmãos e vai para Tiefenbrunnen, para a vila de Yalta, um antigo pensionato para raparigas, transformado em hospedaria – “a casa ficava no meio do campo (…), muito perto do lago, separada dele apenas por uma rua e por uma linha de caminho-de-ferro, ficava, a um nível um pouco elevado, num jardim recheado de árvores”. Em cada esquina havia choupos altos que pareciam segurar a casa, retirando-lhe o aspecto austero e maciço. A mãe doente corresponde-se com o filho, mas este sente-se menos responsável por ela, havendo um misto de distância e de temor, de respeito e perplexidade entre ambos. Surpreendentemente, na vida escolar, depara pela primeira vez com ataques anti-semitas, de que é vítima, ainda que não tivesse muito contacto com outros judeus. No entanto, quanto mais não fosse por solidariedade, Canetti toma consciência do novo fenómeno de perseguição e violência.
A SAÍDA DO PARAÍSO
A relação com a mãe torna-se difícil, a evolução da doença desta, o seu instinto possessivo, que aliás Elias também tem no seu código genético, tudo isso pesa e vai levar a uma mudança na vida do futuro escritor. A mãe, que impusera, com mão de ferro, o ensino do alemão a seu filho, de tal forma que essa língua se tornaria o seu instrumento de trabalho e o levaria ao Prémio Nobel (ele, cuja língua primeira era o ladino ibérico e que se tornara naturalmente anglófono), determina a partida para a Alemanha. “Lutei por todos os meios contra esta mudança, mas ela não ligou a nada, levou-me. Os únicos anos completamente felizes, o paraíso de Zurique, tinham chegado ao fim. Teria provavelmente continuado a ser feliz, não me tivesse ela arrancado à força de lá para fora. A verdade, no entanto, é que fiquei a saber outras coisas diferentes das que conhecera no Paraíso. A verdade é que eu, como o primeiro dos homens, a ser expulso do Paraíso, só então nasci”. De um modo sublime, Elias Canetti fala da sua infância, não como uma história isolada, intransmissível, mas como um tempo em que a vida do mundo vai decorrendo dramática e humanamente. E se o título fala da “língua posta a salvo”, a partir da reminiscência de um episódio da memória remota de criança, quando tinha dois anos, que envolvia uma chantagem amorosa, a verdade é que há uma ligação ambígua entre a defesa da língua da boca e a defesa das línguas como meios de cultura e de comunicação, que tem tudo a ver com a liberdade.
Guilherme d’Oliveira Martins