A VIDA DOS LIVROS
De 29 de Dezembro de 2008 a 4 de Janeiro de 2009
No encerramento do ano, escolhemos o catálogo da exposição realizada na Biblioteca Nacional de Portugal sobre “D. Francisco Manuel de Melo, 1608-1666”. Trata-se de uma iniciativa a saudar positivamente, num ano em que, infelizmente, como já aqui dissemos, não houve suficiente visibilidade na comemoração do quarto centenário do nascimento de uma das grandes referências da cultura portuguesa. O autor de “Apólogos Dialogais” e de uma obra muito rica e multifacetada, que ultrapassa em muito os horizontes da moda do seu tempo, merece estudo, reflexão, leitura e a publicação dos seus livros fundamentais, aguardando-se com expectativa a tradução da “Historia de los movimentos y separacion de Cataluña”. Completaremos a nota habitual com a escolha das dez obras publicadas em Portugal que consideramos dignas de destaque, com o subjectivismo que estas listas sempre têm.
QUE FORTUNA LITERÁRIA?
O acervo bibliográfico que consta da exposição da Biblioteca Nacional demonstra bem a riqueza e a importância do contributo de D. Francisco Manuel para a cultura do seu tempo. A coordenação, pesquisa e selecção da mostra estiveram a cargo de Luís Farinha Franco (autor do texto que acompanha o catálogo) e de Gina Rafael. Trata-se de um trabalho meritório e rigoroso, que permite compreender, no essencial, o lugar do escritor seiscentista no panorama da literatura portuguesa. Descendente da nobreza antiga, o F.M.M. teve nas suas origens familiares uma forte componente culta e cosmopolita (sendo bisneto do cronista Duarte Nunes do Leão) e foi considerado pelos seus contemporâneos como “um grande sujeito dos nossos tempos, muito versado nas línguas da Europa e dado a todo o género de letras humanas em que escreveu vários livros” (na expressão de Alão de Morais). De facto, a obra que nos legou é muito vasta e variada – poesia, teatro, crítica literária, arte militar, história, epistolografia – demonstrando o polígrafo nesses vários domínios uma notória mestria. Era um homem com mundo, com inteligência e argúcia, características bem patentes no que cultivou. Usando uma expressão de Giacinto Manuppella, assumiu o “cosmopolitismo intelectual”, mas também desenvolveu o que poderíamos hoje designar como uma aristocracia de comportamento, que se juntou naturalmente à nobreza de sangue, mas que muito superou esta em significado e consequências. E uma vez que o século XVII abriu novos horizontes no espírito crítico, na interrogação e na dúvida, encontramos no escritor um exemplo superior de vivência desse espírito em contacto directo com alguns dos maiores do século de ouro de Espanha, como o seu amigo Francisco de Quevedo. De um modo tantas vezes fulgurante, D. Francisco foi um homem do seu tempo. Deve, por isso, ser seguido atentamente, na pluralidade da sua obra, ao lado de Rodrigues Lobo, Vieira e Bernardes. Contudo, o talento, as ideias e a capacidade de agir de Francisco Manuel permitem-nos considerá-lo como um paradigma muito especial e de primeira grandeza, num tempo de incertezas e de dúvidas, até pela complexidade do conspecto político nacional e internacional.
UM CERTO ESQUECIMENTO
Porventura, a depreciação do barroquismo até ao século XIX, usado como sinónimo de decadência, atingiu a memória de D. Francisco e dos do seu tempo. No entanto, hoje podemos perceber que a obra do autor das Epanáforas e a sua vida têm de ser vistas a par uma da outra, não podendo ser desvalorizadas, sobretudo por quem queira entender a história peninsular, o século de ouro dos Áustrias e o seiscentismo cultural. Leia-se “O Fidalgo Aprendiz”, por exemplo, ponha-se o texto em paralelo com “Le Bourgeois Gentilhomme” de Molière (obra de 1670, quatro anos depois da morte de F.M.M.): ora, mesmo sem sustentar a improvável influência, temos de entender que o engenho e a arte do português não sofrem desmerecimento. Daí que um certo esquecimento sobre a memória do grande escritor, a que assistimos, seja de espantar. Há um século, também não houve significativas celebrações, mas temos de lembrar que foi à volta dessa efeméride que tivemos a biografia séria e sistemática de Edgar Prestage (Coimbra, 1914), que constitui hoje ainda o mais precioso dos auxiliares para conhecer D. Francisco Manuel de Melo. Carolina Michaelis foi claríssima na altura ao chamar a atenção para a valia do estudo então dado à estampa. É muito curiosa, em complemento, lista de “A Livraria de D. Francisco Manuel” por Raul Proença (“Anais das Bibliotecas e Arquivos, Lisboa, Outº a Dezº 1920), sobre as livrarias de D. Francisco de Malo Manuel da Câmara (o Cabrinha) e de D. Francisco Manuel de Melo. E se muitas vezes se tem comparado a atenção para com Vieira em detrimento de D. Francisco, a verdade é que não há qualquer competição, já que o seiscentismo português apenas poderá ser cabalmente entendido, vendo os dois lados da moeda, complementares, incindíveis – permitindo distinguir o que no barroquismo há de decadente e o que corresponde à afirmação de maturidade e de grandeza. Vieira e Melo são, assim, dois diamantes que não podem ser assimilados a qualquer decadentismo. Leia-se Maria de Lourdes Belchior, Vítor Aguiar e Silva ou Aníbal Pinto de Castro e compreenda-se isto mesmo. Aliás, noutros momentos da nossa vida cultural houve equívocos semelhantes, como no final do século XIX em que os denunciadores da decadência são confundidos com a realidade que pretenderam extirpar.
UMA VIDA APAIXONADA
Seguir a existência de D. Francisco Manuel é acompanhar uma sucessão de acontecimentos de um homem apaixonado pela própria vida, em que o observador se vai dividindo o olhar sagaz e a intervenção activa da acção. Está em Madrid em várias temporadas anteriores à Restauração portuguesa. Essas experiências aguçam-lhe o engenho e o talento. Combate na Flandres e vê-se mergulhado nas atribulações da Guerra dos Trinta Anos e nas agruras de Espanha – com assinalável conhecimento de causa. Depois de 1640, sofre de vários equívocos e mal-entendidos, de efeito dramático. Do lado castelhano e do lado português é visto com desconfiança. “D. Francisco Manuel foi suspeito a Portugal e a Espanha, teve recompensas de ambos os lados, militou de ambos os lados…” – diz-nos Luís Farinha Franco. Mas o pior estaria para vir. Os amores da Condessa de Vila Nova de Portimão? Uma eventual rivalidade com D. João IV? Uma intriga de corte? O certo é que o escritor penaria longamente, às voltas com uma grave acusação torpe, durante mais de dez anos, preso na Torre Velha, na Torre de Belém e no Castelo, condenado ao degredo perpétuo (primeiro com indicação de África, depois da Índia e, por fim, de facto, para o Brasil). Dirá em 1645: “nada do mundo desejo senão o que nele sobeja que é o esquecimento”… Ao fim desse longo calvário, por morte de D. João IV, consegue o “quebramento do degredo” e regressa. Em 1659, está em Portugal, com a “Epanáfora Triunfante”, sobre a reconquista de Pernambuco aos holandeses. O conde de Castelo Melhor então integra-o na acção diplomática de reconhecimento da Restauração – em Inglaterra, junto de D. Catarina de Bragança e de Carlos II, em Parma, Paris e Roma… Dedicará, aliás, à rainha de origem portuguesa as “Obras Morales”, vindas a lume em Roma, no ano de 1664. No ano seguinte, faz sair em Lyon as “Obras Métricas”, dedicadas a D. Pedro II, assim como dedicara as “Epanáforas de Vária História Portuguesa” a D. Afonso VI, em 1660. Em Outubro de 1666, já integrado e reconhecido e mais gasto que velho, chega ao fim dos seus dias, na quinta de Alcântara, sendo sepultado com a lápide que encomendara: “Aqui jaz um grande pecador”… Incompreendido, inconformista, atrevido, inconstante, mas muito talentoso.
2008 – AS DEZ ESCOLHAS DE “A VIDA DOS LIVROS”
“O Arquipélago da Insónia”, António Lobo Antunes, Dom Quixote.
“A Viagem do Elefante”, José Saramago, Caminho.
“A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita”, Herberto Hélder, Assírio e Alvim.
“Myra”, Maria Velho da Costa, Assírio e Alvim.
“Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, Antero de Quental, com prefácio de Eduardo Lourenço, Tinta-da-China.
“Diário 1941-1943” de Etty Hillesum, Assírio e Alvim (tradução de Maria Leonor Raven-Gomes).
“Sob um falso nome” de Cristina Campo, Assírio e Alvim (tradução de Armando Silva Carvalho).
“O Céu é dos Violentos”, de Flannery O’Connor, Cavalo de Ferro (tradução de Luís Coimbra).
“Istambul”, de Orhan Pamuk, Presença (tradução de Filipe Guerra).
“Homem Sem Qualidades”, Robert Musil, Dom Quixote (tradução de João Barrento).
Escolhemos cinco originais portugueses e cinco traduções. Referimo-nos apenas a livros saídos em Portugal no ano 2008. Deixámos muitos de fora, como seria inevitável. Referimos mais dois que ainda poderiam ser considerados se não houvesse um “numerus clausus” de dez: “Livro do Desassossego” de Bernardo Soares – Vicente Guedes, Relógio d’Água e “Paris”, Julien Green, Tinta-da-China (tradução de Carlos Vaz Marques).
Guilherme d’Oliveira Martins