Há uns anos numa das suas crónicas Javier Marías afirmava isto mesmo, para demonstrar que o debate tantas vezes repetido sobre o fim do livro em papel deveria ser considerado com especiais cautelas e sem simplificações. Presenciamos uma evolução muito rápida e profunda sobre a comunicação. A comunicação digital sofreu nos últimos meses um extraordinário progresso, ditado pelo confinamento e pelos efeitos da pandemia. É verdade que muito do que se assistiu, já estava em curso, e se não tivesse havido antes avanços tecnológicos tão significativos, não teria sido possível com tanta rapidez, pôr as pessoas em diálogo, através das redes de informação e comunicação. As conferências “em linha”, os “webinars”, o ensino a distância tornaram-se uma realidade nova, com virtualidades e limitações. E as redes sociais prosseguiram, com as enfermidades conhecidas, com circuitos fechados e microcosmos empobrecedores, mas longe de terem esgotado as suas vantagens… E a leitura? Curiosamente, há sinais vários e até contraditórios, sobre a sua importância, bem como muitas dúvidas e perplexidades. Houve muitas interpretações sobre o sentido do conto “Bright Phoenix” (1947) e o livro que se lhe seguiu e o escritor passou uma boa parte do tempo a desmentir muitas das interpretações pseudopolíticas, dizendo apenas que idealizou e escreveu a obra na Universidade da Califórnia, na biblioteca Powell, com uma máquina de escrever alugada, com o objetivo de prevenir a sociedade de consumo para risco do fim dos livros e das bibliotecas e para um consequente suicídio da humanidade. Contra os riscos totalitários, contra o esquecimento da importância do tempo e da reflexão, o que animou Bradbury foi um profundo amor pelo livro, pela leitura e pelas bibliotecas – como fatores de liberdade. Muito do que afirmou no livro e em comentários subsequentes tornou-se uma realidade quase profética – e o certo é que, nesta última emergência pandémica, houve pequenos sinais (como o escritor também encontrou na sua narrativa) que apontam para que o livro e a leitura são fatores essenciais que asseguram a liberdade e a responsabilidade e podem prevenir contra a manipulação, a simplificação e a emergência de novas formas de servidão. Mas a grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana. De facto, podem trazer-nos o melhor e o pior, a qualidade e a mediocridade, como na vida.
COMO ERRADICAR O ANALFABETISMO?
O primeiro país a erradicar o analfabetismo foi a Noruega, porque a igreja reformada luterana proibiu o casamento de mulheres analfabetas, para que todos pudessem ler a Bíblia. Assim passou de 80 % de analfabetos no início do século XIX para zero por cento, geração e meia depois… Quando em 1990 a UNESCO proclamou o objetivo da “Educação para todos” deu especial ênfase à educação das mulheres – e onde os programas têm sido postos em prática a generalização da leitura tem permitido combater a fome, a doença e a miséria. Ler um poema, contar uma história, cultivar a memória, conhecer os programas de vacinação, as bulas dos medicamentos e as regras da maternidade responsável, salvam vidas humanas. Compreendo o amor de Bradbury aos livros e à leitura, sendo suspeito porque nasci e tenho vivido rodeado de livros, mas não se trata apenas de um gosto egoísta pelo calor e pelo cheiro dos livros. Trata-se do cerne da cultura. Os livros, porém, como as pessoas são diferentes, com qualidades e defeitos. Quando em pequeno me ofereciam um livro novo, desembrulhava-o, a tinta nova inebriava-me e recebia-o como uma visita. Já disse tantas vezes que os Dicionários e as Enciclopédias foram a minha perdição na biblioteca de meu avô. Passei dias esquecidos com eles. Aí conheci Garrett e Herculano, mas também Plutarco, o grande mestre da biografia na coleção inesquecível dos “Cadernos Culturais” da Editorial Inquérito, de Eduardo Salgueiro. Aí encontrei uma verdadeira enciclopédia ao alcance da mão – Licurgo, Sólon, Péricles, Cícero. Mas nos cadernos havia também António Sérgio, Sílvio Lima, José Régio, Nemésio, Casais Monteiro. Foi Agostinho da Silva (bom amigo, graças a Mário Soares) que me deu a conhecer Fernando Pessoa, na coleção de filosofia dos Guimarães. Só mais tarde encontrei Eduardo Lourenço, graças a António Alçada na “aventura da Morais”. Era o tempo dos pequenos cadernos. Os da “Seara Nova” traziam-nos a melhor literatura. O amor da poesia vem de lermos e decorarmos. Ah! Os clássicos: Camões, Vieira, Bocage (tão esquecido), Cesário, Antero, Camilo Pessanha, Sebastião da Gama, Daniel Filipe… E há o gosto pelo teatro, e em especial por Gil Vicente. Maria Germana Tânger ensinar-me-ia a dizer e não a declamar. E Rómulo de Carvalho leva-nos até à “Ciência para Gente Nova”. A “História do Átomo” ou a “História dos Balões” foram lidas e relidas com um prazer enorme… Depois as enciclopédias francesas, a começar no imprescindível Larousse com as ilustrações de uma edição do princípio do século XX. E o vício dos pequenos livros continuou com o “Que sais-je?”. Era puro prazer, e a exigência correspondia, no fundo, ao conhecimento pela narrativa, que nos permitia entender questões complexas – e aprendi que a clareza é a melhor pedagogia, por passos sucessivos e seguros…
LER DE COR
Devorávamos livros porque eram pequenos e acessíveis. E ganhávamos treino para ler Júlio Dinis, Camilo e Eça – e tudo o mais… Poderia dar mil exemplos. O design dos livros originava verdadeiras obras de arte – Sebastião Rodrigues, Daciano Costa, Emmérico Nunes, Fernando Lemos, Mily Possoz, Paulo-Guilherme, José Brandão… De que falo, afinal? Do amor da leitura e dos livros, que é algo dificilmente definível. Hoje o vício de leitura chega, naturalmente, às versões digitais e aos e-books. Ler é ler e para quem tem o vício, ele chega a toda a parte. Sei que as publicações em papel terão um futuro condicionado. Mas os livros continuarão a ser fundamentais. Vai mesmo nascer um tempo em que a digitalização das obras e a sua disponibilização ao grande público criará um interesse redobrado pelas edições em papel de qualidade. Haverá livros de que não poderemos prescindir, aptos a ser folheados e sublinhados. E haverá obras de referência disponíveis através das redes digitais. E continuaremos a ter a biblioteca como mito, segundo o entendimento de Alberto Manguel. De facto, “a Biblioteca de Alexandria foi concebida para fazer mais do que somente imortalizar. Devia registar tudo o que tivesse existido e pudesse ser registado, e esses registos deviam originar mais registos, num infindável rasto de leituras e glosas, que produziriam, por sua vez, novas glosas e novas leituras. Devia ser uma oficina de leitores, não apenas um local onde os livros fossem preservados para todo o sempre”… (A Biblioteca à Noite, Tinta da China, 2016).
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença