No calor algarvio, rodeado de livros acolhedores, preparava-me para voltar a escrever sobre a importância da leitura, como factor essencial de cultura, quando recebi a bela notícia de que em Guadalajara foi reconhecido o valor da obra de Lídia Jorge e o seu “nível literário” de rara qualidade, cuja novelística “retrata a forma como os indivíduos enfrentam os grandes acontecimentos da História”. Lídia Jorge é assim apontada pelo prestigiado júri internacional como “uma das principais autoras de língua portuguesa, por uma obra não só novelística mas também poética, ensaística e teatral”. Deste modo, o júri realça um especial sentido humanista, “na forma de se aproximar tanto dos temas tratados na sua obra – adolescência, descolonização, lugar da mulher, emigração, agentes da História -, assim como na apresentação das personagens que a protagonizam”. Cícero designava, por isso, de “humanitas” o que hoje chamamos cultura. Como Lídia Jorge salientou, num ensaio marcante: “Fiz o meu contrato sentimental com os livros que se parecem com as árvores, aqueles que são da sua matéria, leio cada um desses livros à vez, e cada folha é lida uma após outra…”. De facto, é esta atitude que fica bem evidenciada no percurso intelectual, cultural e ético que se espelha numa obra multifacetada, que nos permite compreender a realidade humana como procura e compreensão do outro, do múltiplo e do diferente. E o certo é que se vivemos numa sociedade eminentemente urbana, consumista e homogeneizadora, “quando, entre nós, se fala de uma sociedade multicultural, e nos referimos à hipótese de virmos a ser uma população colorida, no sentido vital da expressão, estamos porventura a invocar o nosso mais fundo instinto de sobrevivência”. Mas será que poderemos preservar o que é próprio contra a onda predadora da harmonização e da despersonalização? Precisamos, sim, de “uma relação habitada com decência, respeitando o ambiente e a casa, uma atitude de preservação que não se confunda com um respeito museológico, mas impeça as incursões criminosas e a devassa”. E eis-nos perante a “imensa humanidade” da escritora que põe na sua obra o essencial de uma incessante procura do sentido da vida e de uma noção de identidade como ponto de encontro de diferenças e exigência de abertura e de enriquecimento mútuo.
O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL
Há alguns anos, Maria Graciete Besse salientou, com inteira justiça, que «a escrita de Lídia Jorge se caracteriza por um movimento de disseminação que faz evoluir o leitor através de uma notável experiência do tempo quebrado. Com efeito, o estudo da configuração temporal nas suas narrativas revela amiúde a invenção de um modo de narração não linear que, longe de abolir o tempo, condensa-o em poesia e espessura. Toda a sua obra distingue-se pela articulação sustentada do sensível e do inteligível, o que permite reconfigurar a experiência temporal e transmitir uma maior compreensão do mundo, graças à representação axiológica das experiências humanas» (Magazine Littéraire, agosto de 2013). Esse tempo quebrado é, no fundo, o tempo real, vivido no dia-a-dia por cada um, com encontros e desencontros, em que o sentimento e a razão se completam naturalmente. Daí a forte dimensão ética, não como um receituário ou como ambição de uma sociedade perfeita, mas como aceitação da imperfeição e como exigência de não condescender na compreensão mútua e na necessidade de podermos ser melhores. O sentido mágico que encontramos em O Dia dos Prodígios corresponde a esse diálogo entre o que se é e o que se deseja, entre o que se quer e o que se pode, tendo como pano de fundo uma realidade animada pelo sonho. A utopia não é um absoluto, mas um horizonte de esperança e de entendimento da dúvida. Por exemplo, em Estuário, voltamos, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir um certo tempo ou modo, mas para retomar noutra perspetiva um certo sentido profético ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuraram uma reflexão sem ilusões, feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem ou a mulher na modernidade? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Imperfeição e sonho encontram-se para entender a humanidade.
NECESSIDADE DE LER
Perante as incertezas de uma pandemia que continua a resistir, mas relativamente à qual encontraremos certamente soluções, importa compreender como os livros e a literatura, o romance, a poesia ou o ensaio, como a educação e a ciência desempenharão um papel fundamental – a dizerem que não estamos sós. Não está apenas em causa o conhecimento, mas a compreensão das relações humanas, e da dignidade da pessoa humana. E por estes dias, tive o gosto de partilhar com Lídia Jorge a alegria de vermos o largo principal de Boliqueime com vida e prudência, o reencontro de pessoas que tinham saudades umas das outras. De facto, teremos de regressar paulatinamente à convivialidade, em que a distância não põe em causa a fundamental relação olhos nos olhos. A confiança de um saudável aperto de mão tem de ser ligada ao cuidado necessário. Por isso, na vida das escolas, quando elas vão reabrir, as relações pessoais e próximas são condição necessária da boa aprendizagem – e podemos garantir, por experiência antiga, que será na vida escolar saudável que começaremos a ver pelas costas a ameaçadora pandemia. E nesta recordação, lembrei o que o meu avô Mateus contava sobre o seu Professor do Ensino Primário. Quando o tempo permitia, o mestre-escola fazia rumar, em dia certo todas as semanas, os seus discípulos ao campo e aí se dedicava a ensinar peripateticamente os segredos do Borda d’Água, as noções de meteorologia, de orografia e de hidrografia, os nomes das árvores, das plantas e das aves, os tempos certos das culturas, a prevenção contra os animais perigosos ou contra a malária que por ali ainda grassava… E a caminhar ia contando histórias e lendas, e sobretudo com a experiência e o exemplo, falava da formação das pessoas e dos princípios da liberdade e da justiça. E aproveitava para lembrar um algarvio poeta, que se fizera apóstolo da leitura para todos – João de Deus. E, andando nesse adro da Igreja, ali mesmo, podemos ver ainda na identificação dessa rua o nome do velho professor, que os seus discípulos não esqueceram, José Jorge Rodrigues. Foi tão bom, Lídia Jorge, termos celebrado a leitura e os livros com o justíssimo reconhecimento de Gualajara. Não há mais palavras, senão ler…
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença