A “Odisseia” de Homero é para Cláudio Magris o “livro dos livros”. Aí estão os mitos fundamentais da nossa civilização: “o heroísmo de Ulisses e as suas precauções típicas” de quem se “protege dos riscos escutando o canto das sereias atado ao mastro do navio”, as “categorias do amor” (Penélope, Circe, Calipso, Nausica), “o sentido da vida como viagem e do mar como fundo inevitável dessa viagem”. E quem poderá tocar-nos mais do que Ulisses, mito de Lisboa, símbolo da Europa e inspirador das viagens em torno da nossa Ítaca? Como compreenderemos a cultura portuguesa sem a referência à viagem e ao engenho de quem concebeu o golpe fatal que permitiu vencer guerra de Tróia? Camões e Fernão Mendes Pinto continuam, cada um à sua maneira, essa herança fundamental? E como não lembrar “Guerra e Paz” de Tolstoi. Livro fundamental, porque se parece com “a vida que se conta a si mesma e se compõe, apesar de tudo, em harmonia”. Disse o romancista russo: “quando encaro o meu acto no quadro geral da vida da humanidade, no sentido histórico, fico convencido de que era predestinado, inevitável. Onde está então o erro?”. Se o autor vê a história que conta como uma inevitabilidade, não pode esquecer que a sua interpretação, que o seu olhar, assentam numa vontade. E ao interpretar a realidade humana, influencia o curso dos acontecimentos futuros de quantos não forem indiferentes à proposta do autor. Bolkonskys e Rostovs cruzam os seus caminhos na grande história europeia. São marionetas? São pessoas? O que é decisivo? A fatalidade? A fortuna? Quantos europeus não são hoje influenciados pelos ideais de Tolstoi? E “Guerra e Paz” não contribui para melhorar o mundo? O príncipe André, Natacha, o conde Pedro poderiam ser pessoas de carne e osso, porque têm vida e têm sentimentos… Ei-los a ajudarem-nos na descoberta dos caminhos da vida e da história… Ler não pode ser, porém, fugir da realidade, embarcar na pura alucinação. O gosto dos livros não se ensina. Gosta-se, simplesmente, como se gosta da vida e do que nos rodeia. Ouve-se falar dos livros e das suas histórias, de lugares que existem e são distantes, ou de lugares imaginários, ouve-se falar de ideias e de testemunhos. O gosto da vida ou o gosto dos livros transmite-se naturalmente, de modo espontâneo – sem propósitos pedagógicos, sem boas intenções. E assim a leitura torna-se uma “reserva da humanidade”, ao lado de outras formas de arte e de pensamento, da amizade e da recordação das pessoas queridas e amigas. Mas nada garante, só por si, a felicidade nem a humanidade. Não basta o conhecimento, é fundamental compreender e pôr em diálogo as pessoas. “É necessário ler, sabendo que a incrível riqueza humana nos dá a leitura e sabendo ao mesmo tempo que, nem sequer lendo as grandes obras-primas e apaixonando-nos por elas, podemos estar seguros de não cair na indiferença e na maldade”. No fundo, ler permite ter esperança sem estarmos seguros…
Guilherme d`Oliveira Martins