Recordamos o poema gráfico de Ana Hatherly, baseado no celebérrimo poema de Camões que também lembramos:
‘Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.’
Sendo a língua uma realidade viva, vemos aqui um modo moderno e um modo tradicional de usarmos o nosso idioma. Não esquecemos o que Vítor Aguiar e Silva disse: «a língua portuguesa é a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal», o que nos obriga a especiais responsabilidades no culto do bom domínio do idioma, na sua preservação e na respetiva afirmação no mundo dos saberes.
Mário de Carvalho tem recordado, por isso, António Ferreira, no seu louvor à língua, na célebre carta a Pero Andrade Caminha:
‘Floresça, fale, cante, oiça-se e viva
A portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
culpa é dos que a mal exercitaram,
esquecimento nosso, e desamor’
Falar bem a língua é um ato de cidadania. Não há nitidez de espírito, sem ideias claras e distintas. Não há conhecimento sem contacto com os autores e com os textos originais. E, infelizmente, assiste-se ao uso e abuso dos resumos e simplificações – ou à tentação de confundir comunicação com mera descrição simplificada ou linguagem comercial. Num tempo de multiplicação de informações, chegamos ao estranho paradoxo de nos satisfazermos com mensagens rápidas e sincopadas, que pretendem condicionar as opiniões, pondo de lado a complexidade e a necessidade de explicar, de demonstrar, de justificar – formulando juízos infantilmente primários. Perante temas e problemas cada vez mais complexos, deparamo-nos com comentários rápidos e incapazes de considerar o essencial.
Montaigne, na entrada da sua torre, perguntava apenas: «que sais-je?» – e aí encerrava a exigência de um caminho muito árduo para conhecer e compreender. Por isso, dizia que mais valia uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia… E aqui está a necessidade de cultivar especialmente o pensamento. Afinal, quanto menos se ler menos se há de pensar. Eis-nos perante uma condição de liberdade.
E qual o efeito das caricaturas do conhecimento e da aprendizagem, como se a simplificação e a infantilização fossem o caminho? O resultado é a pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem nas exposições, a mistura de argumentos e conclusões e a indigência das ideias. Tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença relativamente ao aprender e ao dizer.
Lembramo-nos do que Vieira afirma no Sermão da Sexagésima: «(O lavrador evangélico) semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para o vento, outro assunto para outro vento, que se há de colher senão vento?».
Se queremos riqueza vocabular, ordenação de argumentos, rigor na exposição e desenvolvimento das ideias – precisamos de cultivar a comunicação e a palavra, de exercitar a memória (ler, repetir, representar a poesia e o teatro), de incentivar a criatividade. Almada Negreiros dizia: «o teatro é o escaparate de todas as artes. Todas as artes são todas as peças da mesma coisa». Língua, leitura e literatura têm de andar a par. Urge compreender um texto, lendo-o no original; relacionar as diversas formas de criação artística, representar poética e simbolicamente as ações, as virtudes, as misérias e os sonhos. Alberto Lacerda tinha razão ao dizer: «esta língua / é minha Índia constante / minha núpcia ininterrupta / meu amor para sempre / minha libertinagem / minha eterna / virgindade» («Oferenda», I). Falamos da língua portuguesa como terceira língua europeia mais falada no mundo, como primeira língua do hemisfério sul, que no final do século ultrapassará os quatrocentos milhões de falantes no mundo…
GOM