Almeida Garrett é o grande inovador da língua e da literatura. É lendária a sua relação com a oralidade popular, transmitida por Brígida e Rosa de Lima, durante a infância. Aí despertou o jovem para as tradições populares – romances, xácaras, narrativas, feitiços, mouras encantadas…
A revolução de 1820 encontrou-o em Coimbra, motivado para a ideia nova de criar um liberalismo constitucional, como nas nações civilizadas da Europa. O país emancipava-se – e proclamava as liberdades. A intenção política não passava despercebida. E o Garrett literato não esquecia o Garrett competente oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (1822), de impecável escrita, dando os primeiros passos na vida profissional.
Depois de um período de intensa motivação política, abre-se um momento difícil com a “Vilafrancada” e a “Abrilada”, que obrigam o poeta a fugir para Inglaterra. Quando regressa é preso. Fica na cadeia muito pouco tempo. Quando o libertam, empreende nova fuga do país. Fixa-se primeiro em Inglaterra e depois em França. Lê então os grandes românticos – W. Scott, Byron – e descobre Shakespeare…
Depressa pensa em recriar literariamente os valores nacionais – com Camões e D. Branca. A outorga da “Carta Constitucional” por D. Pedro trá-lo de regresso à pátria (1826). É o ano da indispensável Carta de Guia de Eleitores – “vade-mécum” da cidadania liberal. Volta à Secretaria de Estado do Reino, polemiza com José Agostinho de Macedo e defende a causa da liberdade, o que lhe valerá três meses de cadeia… Volta a Londres, depois do regresso de D. Miguel.
Em Portugal todos os esforços em prol da liberdade parecem baldados. Na Europa, as circunstâncias são desfavoráveis às cores liberais. Mas em 1830 os ventos mudam. A revolução de Julho abre novos horizontes. O neto de Filipe Égalité simpatiza com D. Pedro e apoia-o. Em Inglaterra a vitória Whig também ajuda. Em Janeiro de 1832 parte de Paris, para chegar a Angra em Março. É o tempo da colaboração intensa com José Xavier Mouzinho da Silveira. Os decretos dos Açores, verdadeira Carta Magna da revolução liberal, têm a intenção do Ministro e o brilhantismo formal do jovem Garrett. Com os heróis do Mindelo chega ao Porto e é integrado no heroico Corpo Académico. Depois da vitória liberal (1834), colabora com o governo saído da Revolução de Setembro, tomando o encargo da organização do Teatro Nacional e do Conservatório de Arte Dramática.
É um dos constituintes de 1838 e aí se afirma como democrata, o que constitui uma ousadia. Não é só liberal, mas sim defensor da soberania do povo, adversário de todas as tiranias e combatente da educação para a liberdade. Mas os ordeiros demitem-no, em 1841 e regressa à oposição…
Em 1843 escreve o “Frei Luís de Sousa”. Aí se nota a interrogação audaciosa sobre os que viriam a ser os grandes mitos nacionais. Manuel de Sousa Coutinho e Telmo são, assim, cada um à sua maneira, encarnações do próprio Garrett. É a essência do constitucionalismo liberal que está por detrás desta interrogação fundamental sobre o destino coletivo. E Garrett enaltece a nacionalidade como fator de liberdade política. As tradições são usadas pelo dramaturgo como fatores de emancipação. Assim se compreende que alguém fortemente crítico da antiga legitimidade e do antigo regime lance os fundamentos do novo patriotismo com ingredientes históricos totalmente renovados. É o período áureo da criação garrettiana.
Inicia a escrita de “Viagens na Minha Terra”, onde começa por contar o percurso que faz para visitar o seu amigo Passos Manuel, no exílio político em Santarém. Estamos perante um relato no qual a realidade e a ficção se confundem. O escritor invoca o heroísmo fundador da liberdade e a degenerescência do dia a dia político, de que é símbolo o protagonista Carlos – que cai “no indiferentismo absoluto”, pois “fez-se o que chamam cético”. “Morreu-lhe o coração para todo o afeto generoso e deu em homem político ou em agiota…”.
Garrett surge como “mensageiro do novo espírito europeu” – como disse Ramalho Ortigão. “Foi ele que, de chapéu branco, calças de quadrados, gravata encarnada, monóculo no olho, um charuto nos beiços e uma chibata em punho, vergastou as orelhas do velho mundo português e o obrigou a abrir a primeira garrafa de champagne. Nós não éramos todos uns pobres velhotes, uns ginjas, uns xexés. Foi ele que, por meio dos seus livros, nos deitou nos copos e nos fez beber o vinho da mocidade. E foi depois de reconfortados por esse generoso licor de poesia, que nós aprendemos a estimar a beleza, a amar a liberdade, a compreender as artes e a querer o progresso”.
Que mais haverá a dizer? Ele foi um núncio da modernidade. Quando o romeiro responde que é ninguém no “clímax” trágico bem conhecido do “Frei Luís de Sousa”, põe no centro da reflexão dramática não apenas a questão da ausência e da vida que não se detém, mas fundamentalmente a força maior do mito sebástico, “a primeira mitologia portuguesa sem transcendência”, no dizer de Eduardo Lourenço – não confundível com um destino impossível e inútil, mas sim legitimador de uma vida assente no querer das pessoas e dos cidadãos, do povo-povo que sempre entusiasmou Garrett. Assim mesmo é nosso contemporâneo o sublime autor das “Viagens”, peregrinação que nos ensina a melhor nos conhecermos.
GOM