A Vida dos Livros

Revista “O Tempo e o Modo”

Lembramos hoje a revista “O Tempo e o Modo”, invocando António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, a propósito de um texto fundamental sobre o Concílio Vaticano II. Não pode ficar sem referência especial, no mundo das ideias, a partida de Frei Mateus Cardoso Peres, O.P. (1933-2020), pelo que representou a sua personalidade e pela obra que nos deixou.

UM TEXTO PREMONITÓRIO
Conheci-o bem por razões familiares e tenho pela sua vida e obra uma grande admiração. Devo lembrar que o grupo de que fez parte dos “católicos inconformistas” integrou alguns dos meus grandes amigos, como António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa – num conjunto mais vasto de quem sempre estive próximo, entre os quais se contam Pedro Tamen, Maria Isabel Bénard da Costa, Nuno Bragança, Ruy Belo, M.S. Lourenço, Manuel Lucena, Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Falo da Aventura da Morais, de “O Tempo e o Modo”, da revista “Concilium”, do Centro Cultural de Cinema (CCC) e do Centro Nacional de Cultura. E se há quem obrigue a considerar com o maior cuidado a expressão de Ruy Belo sobre “Os Vencidos do Catolicismo” é exatamente Frei Mateus. Com efeito, o tempo passou e não devemos esquecer que o célebre poema abria já a porta relativamente aos exatos termos do que representa essa geração. “Nós que perdemos na luta da fé / não é que no mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos”… O poeta bem conhecia a origem oitocentista da designação dos “vencidos da vida”, e sabia que o tempo os tornaria vencedores, não no sentido temporal, mas no sentido das ideias e da essência do espírito. Há trajetórias diferenciadas, é certo, mas há também que entender os frutos de longo prazo que foram lançados… “Victus sed victor” – e porque há quem continue a resistir ao entendimento sobre os sinais dos tempos, a verdade é que continua atual esse combate sereno e persistente não por uma Igreja triunfante, mas por um caminho cristão de respeito mútuo e de dignidade. Não esqueço, há muitos anos, um convite que Frei Mateus me fez para ir falar a Fátima à comunidade dominicana sobre pluralismo e tolerância. Lá estivemos, uma tarde de Primavera, e não esqueço as estimulantes reflexões de outro saudoso amigo, Frei José Augusto Mourão. Longe de orientações fechadas, eis que ficou uma pergunta, mais do que quaisquer respostas: como lidar com os intolerantes? Como distinguir a tolerância, enquanto respeito e não indiferença, a intolerância e as pessoas intolerantes? E o tema continua na ordem do dia. Frei Mateus era um intelectual rigoroso mas estimulante, avesso às simplificações. Com ele sabíamos que a dignidade humana exige procura, e que o diálogo só vale a pena se for trabalhoso… Sempre nos ensinou, por isso, que a teologia obriga a conhecimento e a ir além da superficialidade – o “aggiornamento” obrigaria, pois, a tempo e a reflexão. Daí a importância dos célebres colóquios para assinantes da “Conciluim”: refletindo sobre e com Schillebeeckx, Chenu, Congar ou Balthasar… Leia-se, por isso, um texto fundamental e premonitório publicado no nº 32, de “O Tempo e o Modo”, de novembro de 1965, intitulado “A 4ª Sessão, o Concílio e a Igreja”. É um artigo histórico. Assina-o Manuel Frade, pseudónimo de Frei Mateus Peres, apropriado para evitar mal-entendidos. Aí encontramos a defesa de uma fraternidade colegial conciliar, a crítica de alguma excessiva prudência papal e a defesa da necessidade de retirar consequências no tocante à liberdade de consciência e à liberdade religiosa… “Permanece problemático saber se o homem do nosso tempo sentirá, face a este documento (sobre liberdade religiosa), a Igreja francamente simpática ao respeito devido à liberdade religiosa dos não-católicos e se se convencerá de que ela renunciou de uma vez para sempre ao imperialismo doutrinal, para enveredar por caminhos de diálogo, de fraternidade, de serviço”. Já quanto ao importante esquema 13 (que se tornaria a constituição “Gaudium et Spes”), salientando a sua importância, temia que lhe pudesse faltar “simplicidade, clareza e força, (…), para poder ajudar os mais desesperados”. E dava um exemplo: “o esquema quando trata da guerra e paz, condena o uso das armas atómicas mas não a sua posse, o que é sancionar as armas de dissuasão, os orçamentos militares, a guerra fria”…

O TEMA DO CELIBATO
Por outro lado, as orientações sobre a vida sacerdotal, designadamente quanto ao celibato, deveriam ter merecido mais atenção, mas foram subtraídas pelo Papa à discussão da Assembleia… Ontem como hoje, o velho tema persiste, e o autor não deixava de colocar o dedo na ferida. E afirmava: “Seria talvez mais eficaz e mais puro, em vez da avalanche de textos equilibrados, sensatos e timoratos, propor ao mundo, em toda a sua inteireza, uma bela linguagem profética, que não pretendesse solucionar os problemas à luz da moral atual, mas que lançasse os espíritos para maiores exigências, experiências mais radicais. Estamos confiantes que essa linguagem seria útil, certos de que as dificuldades são mais frequentemente superadas do que resolvidas e de que ela iria em cheio atingir aqueles que mais desesperadamente estão à espera, mesmo inconscientemente, da Igreja de Cristo. O Concílio apareceria então como verdadeiro acontecimento espiritual, no sentido mais nobre do termo, concretização do “amor pela humanidade” na palavra já citada de Paulo VI, da intuição genial de João XXIII”. E acrescentava que a mensagem poderia não tocar o homem da rua, por ser superficial e faltar-lhe novidade. E, citando Charles Péguy, sem o dizer, afirmava que seria melhor ser mais “místico” e menos “político”. De qualquer modo, para Frei Mateus, os esquemas sobre a liturgia e sobre o ecumenismo eram muito bons e muito positivos… Sobre as relações com o mundo as dificuldades eram naturalmente maiores, e não podemos esquecer o que ocorreu entre o naufrágio do primitivo esquema 17 e o esforço titânico de João XXIII, com a encíclica “Pacem in Terris”, para dar sentido a uma relação positiva e transformadora da Igreja no mundo, no sentido de uma cultura de paz… Esta expressão crítica dá-nos boa nota sobre a extraordinária independência de espírito do pregador e sobre o seu empenhamento na renovação da Igreja. No entanto, havia “toda uma série de textos conciliares (…) preciosamente válidos e que nos dizem muitas coisas muito úteis. Em certo sentido podemos dizer que ao pós-concilio caberá decidir da sorte do Concílio”. Assim tem acontecido, como sempre ocorre na História. “Se os textos forem bem aproveitados nas suas facetas positivas, se se mantiverem bem vivos o espírito e o clima do Concílio no seu pendor mais corajoso, a Igreja nas suas múltiplas manifestações locais, poderá conhecer uma certa transformação, condição indispensável de um certo tipo de diálogo com o mundo”… Frei Mateus conhecia as audácias de S. Tomás de Aquino, bem distantes de qualquer lógica conformista. E quando relemos este texto, vem à memória esse lado saudavelmente crítico…

Guilherme d’Oliveira Martins

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