Saudade ou sôdade como lembrança e desejo e Morabeza como predomínio do afeto caracterizam a humanidade das culturas da língua portuguesa. Quando lemos D. Duarte, Bernardim Ribeiro, D. Francisco Manuel de Melo, Duarte Nunes do Leão, Garrett, Rosalia de Castro ou Cesária Évora sentimos que há algo que nos diz respeito, com que temos de lidar para não cairmos num sentimentalismo que reduz a vontade e a determinação. Eduardo Lourenço fala-nos, por isso, de um autêntico Labirinto que não pode ser visto como um destino retrospetivo. O “Desterrado” de Soares dos Reis simboliza espera e ausência. No Leal Conselheiro encontramos uma definição (de saudade) “acompanhada e esclarecida por uma análise caracteristicamente filosófica”. A novidade do conceito reside no seguinte: a saudade é um sentimento; não está vinculada necessariamente ao desejo; resulta da ausência de seres que se ama ou de estados que se estimam; “a melhor saudade é a que nos atualiza, pondo-nos de acordo com o tempo e dando-nos portanto prazer». Esta definição de Afonso Botelho corresponde ao que se pode designar como “humanismo esperançoso”, que parte de uma solitária saudade medieval para chegar à “reminiscência forçosa” de D. Francisco Manuel. Sem entrarmos na indagação sobre um eventual platonismo, o certo é que a saudade é um movimento – que no domínio intelectual é um diálogo. Deste modo, a saudade é um sentimento ou a consciência refletida desse sentimento – demarcados do saudosismo, como movimento de raiz poético-filosófica. Assim, a saudade vai situar-se entre a ânsia da Pátria Celestial e a lembrança da Pátria Terrena. Mas Leonardo e Pascoaes estão separados porque têm intuições religiosas diversas. Lembremos que o universo para Leonardo Coimbra é criado pelo homem num processo dialógico que o faz chegar a Deus pelo fraterno amor de tudo, e não como algo criado de uma vez por todas pela vontade divina. Deus é, assim, a luz que ilumina a ação criadora do homem – é o Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move, atraído pela «grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e o entendimento é Amar. Pascoaes, ao contrário, obedece aos dois movimentos, «um ascensional (o mítico em Maranus) outro descensional (que é precisamente o religioso do Regresso ao Paraíso)». No fundo, a Pátria de Pascoaes assume-se no homem, “mesmo quando a presença de Deus nele se faz sentir, até porque a divina presença desde que o foi dessa Pátria, já nela não pode ser esquecida”. Na fecundidade deste diálogo, Afonso Botelho centra-se na perfectibilidade do sentimento saudoso, ou seja um movimento permanente de reconhecimento da imperfeição e de impulso necessário ´para a sua superação – isto é, “a garantia de que o sentir só se completa no existir, por mais elevada e infinita que seja a saudade ou a sua órbita”. Como movimento, a Saudade apenas “se completa restituindo ao homem o sentimento da própria Graça que o elevou ao centro da redenção”. “Se o que domina a ontologia existencial é a definição do ser do tempo, creio que esta só poderá reencontrar-se na ontologia da saudade, que é a do tempo sem ser – ontologia negativa ou transcendida que determina a eliminação do tempo, precisamente porque em verdade o completa» (A. Botelho). Para Pascoaes: “O existir cria a ilusão do tempo. O que passou e o que há de vir eis a matéria, o corpo da saudade. O eterno compõe-se de coisas transitórias”. Vulgarmente ou mesmo culturalmente, pensa-se que “o Saudosismo é o mais acabado dos passadismos, mas assim não é. De facto, na saudade-saudade, segundo Afonso Botelho, o passado vale tanto como o futuro – “pois um e outro nela se acordam ou se eliminam, o que é o mesmo”. As saudades do futuro do Padre António Vieira são isso mesmo. Pascoaes diria, poetando, “A folha que tombava / Era a alma que subia” e Fernando Pessoa interpretaria: “A queda da folha é materialmente a subida da alma”. Leonardo põe a tónica na alma que sobe, enquanto Pascoaes interroga a folha que tomba… E a Renascença Portuguesa representa a procura destes dois movimentos paradoxais, equivalentes ao “poder convergente da Saudade, que se opõe a qualquer interferência do tempo exterior ou heterogéneo”…
No romance de Baltazar Lopes da Silva “Chiquinho”, o autor explica que a palavra “morabeza” significa amorabilidade. Segundo Brito-Semedo: “Este sentimento, que é mais visível e praticado nos meios rurais, manifesta-se, contudo, de forma particular em cada uma das ilhas. Por exemplo, em Santo Antão havia (…) o hábito de convidar os viajantes que faziam as suas jornadas a pé a entrar nas casas ao longo do caminho e secar o calor, que é, como quem diz, beber um cálice de aguardente (o grogue) e descansar um pouco. Nas outras ilhas agrícolas, nomeadamente em Santiago, nunca se vai fazer uma visita sem levar um agasalho, ou seja, uma prenda para os donos da casa, que pode ser um lenço de amarrar (lenço de cabeça), uma garrafa de grogue, algum rapé, ou um palmo de tabaco enrolado. O visitante, para além de ser bem recebido, normalmente regressa com um cabrito, um frango, ovos, leite coalhado ou queijo fresco, ou um saco contendo banana, papaia, mandioca, batata-doce, enfim, os produtos hortícolas que estiverem disponíveis no momento. Ser morabi (a expressão é da ilha Brava), afável e gentil, é a expressão do sentimento da morabeza, que é, afinal, a forma de o Cabo-verdiano estar no mundo”.
GOM