O mito sebastianista corresponde a um delírio, sentimentalmente verdadeiro embora racionalmente falso. Miguel Real tem razão. Assim, o sebastianismo constitui uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os “a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do país se apodera como coutada sua…” (“Nova Teoria do Sebastianismo”, D. Quixote, 2014). Contra o conselho dos mais avisados, D. Sebastião sentiu-se motivado pelo sucesso de Lepanto e envolveu-se numa questão dinástica no reino de Marrocos. O resultado foi um desastre, tanto maior quanto não havia descendente que lhe sucedesse em Portugal – com três reis mortos e um reino momentaneamente pedido. Não houve avisada prudência e a nação ficou órfã. E a loucura gerou um mito. Eduardo Lourenço, no prefácio a “Origens do Sebastianismo” de Costa Lobo (1909), lembra o sentido crítico de António Sérgio, em justa demarcação do saudosismo sebastianista, pouco conforme com as suas preocupações de lançar para o tempo atual as bases de uma autêntica reforma de mentalidades. Tratava-se sergianamente de combater a generalização perniciosa justificativa de uma acomodação sentimentalista. Se Oliveira Martins considerou o sebastianismo uma “prova póstuma da nacionalidade”, haveria que compreender que «do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico”, nasceu um «mito cultural de ressonância incomparável». O que estaria em causa no caso português era uma “decadência inconformada consigo mesma”, assumida após um momento dramático em que um passado glorioso deu lugar a uma humilhação incompreensível nas areias de Marrocos e depois a uma “Corte na Aldeia”, recriada por Rodrigues Lobo. E assim o sebastianismo tornou-se “o epílogo, e a manifestação mais palpável do espírito nacional”, (…) “embebido na imaginação” e “nutrido pelo conhecimento da decadência nacional e pela recordação e saudades de tempos mais felizes”. O episódio pode comparar-se a uma espécie de cativeiro da Babilónia, visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso como símbolo de uma história que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Vinha à memória a analogia entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro. E Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente na Monarquia Dual, mesmo que o império do Oriente tenha sofrido dramaticamente por força da expansão holandesa. E Portugal fica «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Só quando o Conde Duque de Olivares teve a tentação unificadora peninsular, a revolta tornou-se inexorável, com apoio francês no desenrolar da Guerra dos Trinta Anos. Indagador dos mitos nacionais, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, considerando, como Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não podia confundir-se com uma incapacidade de espera. Veja-se como Garrett trata dos temas da ausência e da espera em “Frei Luís de Sousa”. O sebastianismo, como mito, é um sonho e uma vaga esperança messiânica. E neste ponto o ensaísta contemporâneo não pôde deixar de se cruzar com Fernando Pessoa, poeta que pensa no mito como impulso libertador. Estamos perante um «mito», mas não diante de uma ideia transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que encontramos – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda (também ele viria de Avalon numa manhã de nevoeiro) ou de Amadis de Gaula. Contra o fatalismo, ressurge a nação como vontade, na expressão de Alexandre Herculano – vontade temperada pela índole coletiva. Sampaio Bruno preferiu procurar uma significação metafísica, Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, segundo Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo ancorou nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar (1581) até ao Primeiro de Dezembro de 1640. Eduardo Lourenço, como Sérgio, chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Lembramo-nos do “Auto da Lusitânia” de Gil Vicente. Deste modo, o autor de «A Nau de Ícaro» faz um retrato fulgurante da mitologia portuguesa, na linha da sua psicanálise mítica do destino português. “Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Que a sorte a não dá”… Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que conduziram a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho».
GOM