Como continente em miniatura e lugar de encontro de muitos povos, Portugal tem uma gastronomia naturalmente sortida e cheia de pequenos segredos e mistérios. Encontramos mesa rica e mesa pobre, mas fundamentalmente a mesa remediada no dia-a-dia, feita com o que são os alimentos da estação com a necessária sobriedade. Convém lembrar que a palavra “comer”, origem da “comezaina” queirozina, vem do latim cum edere, que significa alimentar-se em companhia, fator fundamental da transmissão de valores, da boa conversa, do convívio, da partilha do pão e do vinho. E diz o povo “à mesa não se envelhece”, percebendo-se que os afetos tornam a vida mais fecunda e duradoura. A literatura está plena dessa vital comunicação, que figura, em toda a sua riqueza, na eucaristia. E esta palavra, que vem do grego kharis, favor, graça, significa agradecimento, gratidão, ação de graças. O leitor de A Cidade e as Serras lembra a famosa ceia oferecida por Jacinto no 202 dos Campos Elísios, na comemoração do peixe da Dalmácia, encalhado e perdido no teimoso elevador dos pratos. O requinte transforma-se em caricatura, que aumenta o tédio. Mas também nos recordamos do arroz com favas, servido na primeira refeição de Jacinto em Tormes, para saciar a sua «velhíssima fome»? E aquilo que encanta o herói de Tormes não é o arroz, ou o apetecível frango assado no espeto, nem a salada temperada com azeite da serra, mas o vinho: “caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo”. Cada um lembrará momentos verdadeiramente restauradores, como uma cabidela de galinha pica no chão e um arroz solto bem simpático… A UNESCO declarou em 2013 património imaterial da humanidade a Dieta Mediterrânica, que envolve sete Estados – Chipre (Agros); Croácia (Hvar e Brac); Espanha (Sória), Grécia (Koroni); Itália (Cilento); Marrocos (Chefchaouen) e Portugal (Tavira). A Dieta caracteriza-se pelo consumo de elementos frescos, produzidos localmente, de acordo com as estações do ano. Promove a utilização de leguminosas, hortícolas, frutos secos, frutas diversas, incluindo citrinos, como laranjas e tangerinas, e ainda damascos ou albricoques, ameixas, romãs e outros…Comer é um ato cultural, a refeição em conjunto assegura a transmissão de valores culturais e éticos e a permuta de conhecimentos, além de negociações e acordos. O fundo mediterrânico revela-nos muitas palavras de origem árabe ligadas à alimentação: açorda, alcachofra, alcagoita, alcaparra, alecrim, alface, alfarroba, almondega, alperce, alqueire, arroz, azeitona, cenoura, escabeche, griséus, laranja, limão, sorvete, salada, tâmara e xarope. Percebe-se bem como a cultura portuguesa se faz de norte para sul e de sul para norte. Há um entrosamento, que leva à partilha de tradições diferentes. Comecemos pelo Pão. Etimologicamente vem de pan, que significa em grego tudo, e a variedade é extraordinária: de trigo, de milho, de centeio. E temos desde a broa de Avintes às bôlas recheadas, exemplos de fazer da massa de pão um fantastico alimento. O azeite é um néctar essencial. Corroborando o que Jacinto sentiu em Tormes, temos os vinhos, que o tempo tem tornado de maior qualidade, graças à delimitação das regiões, começada com Sebastião José, no Douro, com o vinho fino, se curarmos dos vinhos generosos. Há os vinhos verdes (no Minho e na continuação da Galiza, dos Alvarinhos) e os maduros, com grande desenvolvimento. Minho, Douro, Bairrada, Valpaços, Dão, Bucelas, Colares, Carcavelos, Setúbal, Alentejo, Algarve e Madeira são regiões de dimensão e importância diferentes, mas onde a qualidade singra. Júlio Dinis retrata-nos em “Uma Família Inglesa” a importância do comércio do vinho fino, baptizado como do Porto. Na variedade dos acepipes, que o grande gastrónomo Paulo Plantier importalizou em “O Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), temos magníficas sopas, a começar no célebre caldo verde, acompanhado de broa de milho, e a continuar na grande variedade dos legumes, e a terminar nas sopas frias alentejanas, o gaspacho (de tomate, pepino e pimentão). Na nossa gastronomia merece destaque o cozido à portuguesa, feito com vegetais, carnes e enchidos cozidos. No que respeita aos vegetais, temos feijões, batatas, cenouras, nabos, couves e arroz, carne de bovino de diversas partes. Nos enchidos, são típicos o chouriço, a farinheira, a morcela e o chouriço de sangue. No tocante aos enchidos, é de referir o subterfúgio usado pelos cristãos novos a partir do século XVI. Proibidos de comer carne de porco, os habitantes de Mirandela criaram uma salsicha feita com pão, arroz ou frango, que se assemelhava aos tradicionais chouriços e farinheiras com carne suína: e assim nasceram as alheiras. A lista das iguarias é extraordinária. Nos peixes e mariscos, temos o bacalhau vindo da Terra Nova, a sardinha, o atum e as ameijoas. E na doçaria, a variedade é apetitosa: ovos moles, pão de ló (desde Felgueiras a Ovar, variando na consistência), toucinho do céu, papos de anjo, pasteis de nata, pasteis de Belém, arroz-doce, queijadas de Sintra, travesseiros, pasteis de Tentúgal, pudim Abade de Priscos, e a doçaria do Algarve feita com amêndoa e figos, como D. Rodrigos, Morgados e Queijo de Figo… A melhor doçaria conventual é reminiscência dos gostos da nobreza, já que as filhas-família levavam para a congregação as receitas de família. O predomínio dos doces com gemas de ovos deve-se ao facto de as claras serem aproveitadas para os engomados dos hábitos e para clarearem as hóstias a consagrar. Sobrando muitas gemas, elas eram utilizadas nos doces. Uma das consequências do aumento da produção de açúcar (ouro branco) e respetivo barateamento, com as viagens dos portugueses e a produção das ilhas é a generalização das doçarias. E terminamos, referindo a natureza morta da autoria de Josefa de Óbidos. Como afirma António Pinto Ribeiro: «Uma tela de Josefa de Óbidos (1630-1684) cria mais apetite, sofistica mais o gosto e revela mais voluptuosidade do que todos os programas de culinária que as televisões exibem. Por exemplo, Uma natureza morta com doces e barros, de 1676, que está exposta na Biblioteca de Santarém. À boa maneira dos bodegón, esta composição meridional, quente, com grande riqueza plástica e cromática, apresenta uma combinação de doces e utensílios de barro de cozinha. O seu propósito era decorativo, embora houvesse uma simbologia cristã (e portanto programática) nessas obras que decoravam as casas nobres da época. A belíssima descrição de Gustavo de Matos Sequeira — desta e de outra pintura, Natureza morta com flores — diz que são “quadros de alto sentido decorativo, tão ricos de cor, dominadores pela opulência da composição (…), [dando-nos] com feminilidade conventual uma lição do que era a confeitura fria do seu tempo, empapelada de rendas, acondicionada em condessas de verga fina, resguardada em caixas pintadas (…) num jeito de glória teatral às virtudes domésticas da culinária doce”».
GOM