Se Portugal no século XIV antecipou o fim do espírito medieval, anunciando a modernidade, tal deve-se, em parte significativa, à mensagem franciscana. Aos medos medievais ligados à natureza e ao desconhecido contrapôs a herança de Francisco de Assis a atitude da cultura moderna, orientada para o espírito de descoberta, que favoreceu o conhecimento e a expansão europeia. D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa, mulher de D. Dinis, é exemplo de vivência franciscana – a quem se deve o impulso da nova influência. Mesmo as repercussões entre nós de Joaquim de Flora, o monge pré-franciscano, que deixou fortes marcas no franciscanismo espiritual, não podem deixar de ser vistas em ligação com a mensagem do “Poverello”. A ideia de uma “Idade do Espírito Santo”, onde a reconciliação e a justiça fossem a regra, tem aqui uma base muito sólida, que se projetará na “História do Futuro” do Padre António Vieira e nas “saudades do porvir”, que procuram contrariar visões fatalistas ou horizontes sem esperança. O franciscanismo teve influência decisiva na construção da nossa cultura. Basta ver como a nossa literatura se alimentou desse “poderoso sopro espiritual”, para usarmos a expressão feliz de António Quadros. Não podemos esquecer essa simbiose mística cantada por Frei Agostinho da Cruz, de modo sublime (“Daqui mais saudoso o sol se parte; / Daqui muito mais claro, mais dourado. / Pelos montes, nascendo, se reparte”). E quando partimos mundo afora em busca do incerto e do misterioso, fizemo-lo nesse espírito. Jaime Cortesão ligou, pois, o espírito franciscano aos fatores democráticos na formação de Portugal. E não se pense que se trata de forçar a nota. O que importava era ligar o “saber de experiências feito” aos sentimentos, numa lírica franciscana “repassada de ternura e piedade”. Basta ler Antero de Quental para o compreendermos. E Jaime Magalhães de Lima, discípulo do santo de Assis e de Tolstoi, falava da “glorificação da terra e da alma tal qual a santidade e a poesia a conceberam em um fenómeno de exaltação que foi um relâmpago de luz incomparável sobre todas as dúvidas que nos atormentam a felicidade”. Santo universal – eis como é designado Francisco, mesmo por quantos lhe admiram apenas as qualidades humanas. É esse universalismo que merece realce, partindo da dignidade da pessoa humana e fundando a moderna cultura de direitos e deveres fundamentais. Já referimos Frei Agostinho da Cruz, poeta franciscano maior. Poderemos ainda citar Camões, pelo espírito de que está imbuída a sua obra épica e lírica, perpassada por uma atitude amorável e terna. E poderemos aludir ainda a Francisco de Portugal, Jerónimo Baía, D. Francisco Manuel de Melo e ao Padre António Vieira. Enquanto Francisco Manuel diz “Deus fá-lo grande; Francisco faz-se pequeno”, Vieira proclama: “Negou-se de tal maneira a si mesmo, que deixou totalmente de ser o que dantes era. Pois se Francisco não era Francisco, que era? Era Cristo”. E, em chegando ao século XIX, encontramos Garrett, em especial nas “Viagens”, onde Frei Dinis testemunha a importância antiga da tradição franciscana, que Herculano exalta em “A Harpa do Crente”. E temos de voltar a lembrar Antero de Quental, assumidamente admirador do Poverello, e Eça de Queirós, invocador de Frei Genebro. E, no século passado, Teixeira de Pascoaes, em “Marânus”, enaltece o santo com todo o seu talento (“S. Francisco de Assis falava outrora, / Aos animais, às flores, triste e só…”), como o faz Afonso Lopes Vieira (“O povo da cercania / vai fazer a montaria / à fera que o assaltava / e os gados lhe perseguia!”). E até o renitente Fernando Pessoa foi influenciado pelo santo de Assis ao escrever, franciscanamente, à volta de 1912, “Prece”: “Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim”… Como salientou, Agostinho da Silva, na esteira de Cortesão, o mundo que o português criou corresponde a uma síntese complexa, onde tudo isto se encontra: o sonho, a descoberta, a aventura, a cordialidade, o desafio, a incerteza, a disponibilidade, o diálogo, a diferença, a natureza… E se nos lembrarmos do prolóquio popular, que persiste nos Açores, “a cada canto seu Espírito Santo”, fácil nos é de perceber a influência do franciscanismo e do culto do Espírito Santo, como sinal emancipador e de uma nova prática social e religiosa, assente numa sociedade humana, não mero lugar de passagem e de expiação, mas de exigência e de entreajuda na busca da justiça e do respeito mútuo. E o certo é que esse culto foi reforçado pelos franciscanos, para quem “Cristo era irmão dos humildes; e a Virgem, cujo culto difundiram e exaltaram, a Mãe misericordiosa dos homens”.
GOM