A VIDA DOS LIVROS
De 27 de Outubro a 2 de Novembro de 2008.
Termino hoje o relato da expedição à Europa Oriental e invoco um autor e uma obra que merecem recordação na Rússia contemporânea. De facto, “Cinco Meditações sobre a Existência” de Nicolau Berdiaeff (tradução de Ana Hatherly, Guimarães Editores, 1961), pela densidade criadora e pela força espiritual representa a vitalidade de uma cultura, que volta a merecer atenção, não já como fenómeno excepcional ou clandestino, mas como expressão de uma vitalidade que mergulha as suas raízes na cultura de Tolstoi e de Dostoievsky. Berdiaeff (1874-1948) foi, ao lado de Lev Chestov (1866-1938), um dos mais conhecidos filósofos russos do início do século passado, que influenciou decisivamente o pensamento existencialista. Foi ele quem falou de uma “ideia russa” de cultura: “A ideia mestra da minha vida é a ideia do homem, do seu rosto, da sua liberdade criadora e da sua predestinação criadora. Mas tratar do homem é já tratar de Deus. Isso é essencial para mim”. E daí a necessidade da ligação da espiritualidade à existência, porque “a Verdade implica a actividade do espírito do homem, o conhecimento da Verdade depende dos graus de comunidade que podem existir entre os homens, da sua comunhão no Espírito”.
Ermitage (Palácio de Inverno)
Um dia inteiro no Ermitage, o Palácio de Inverno, é pouco, mas é uma experiência única. Esta é a obra-prima do arquitecto Rastrelli, entre o barroco tardio e o neo-clássico, lugar onde a família imperial passava de Novembro a Março. No tempo de Alexandre II, duzentas pessoas tinham a seu cargo o aquecimento destes edifícios descomunais. E está ainda presente a recordação da derradeira reunião do governo de Kerenski e dos estragos causados pelo cruzador “Aurora”, em Outubro de 1917. Aqui está o fundamental da arte europeia: Leonardo, Rafael, Caravaggio, Belotto, Velásquez, a maior colecção de Rembrandt, até Cezanne, Picasso e Matisse. O “Filho Pródigo” de Rembrandt é hoje rodeado de especial curiosidade do público, em virtude da célebre meditação do Padre Henri J.M. Nouwen (1932-1996), segundo a qual: «a história do filho pródigo aos olhos da fé converte-se no regresso do Filho de Deus, que reúne todos em Si mesmo e condu-los à casa do Pai celestial. Como diz Paulo: ‘Porque agradou a Deus que residisse n’Ele toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas todas as coisas, pacificando, pelo sangue da Sua Cruz, tanto as da Terra como as dos Céus” (Co., 1, 19-20)». Perante o Memorial dos Generais, participamos na homenagem aos vencedores de Napoleão, a começar no Marechal Kutusov, estratega e glória da vitória de 1812. A imagem do czar Alexandre I domina o espaço rodeado pelos principais protagonistas desse momento heróico. É-nos dado ver ainda parte da colecção fantástica de artes decorativas, jóias, artefactos e antiguidades… No teatro do Ermitage, recordamos Luísa Todi, referência mítica, que aí cantou, de 1784 e 1788, para Catarina II, a qual, encantada, a presenteou com uma fabulosa colecção de jóias que viria a perder-se no terrível desastre da Ponte das Barcas (1809). No dia reservado às visitas ao Palácio de Verão de Catarina I (na Aldeia dos Czares, Tsarskoye Selo) e a Paulovsk a chuva apareceu. Ao chegarmos às imediações do sumptuoso Palácio de Verão, significativamente renovado e aumentado por Isabel Petrovna, a guia falou-nos do jovem africano que veio para a corte de Pedro, o Grande, baptizado como Abram P. Gannibal, tornou-se um destacado general das tropas russas e foi bisavô do poeta Alexander Pushkin (1799-1837), que estudou no liceu de Tsarskoye Selo. Como sabemos, o grande poeta nacional russo, autor de “Eugene Oneguin”, seria morto num duelo, originado por uma cabala sobre a suposta infidelidade de sua mulher Natália Goncharova…
No Palácio de Verão, a sala de âmbar, totalmente reconstruída, depois da destruição do cerco de Leninegrado, é espectacular, mas junta-se à profusão de talha dourada, à espectacularidade das galerias de espelhos, às estufas holandesas de Delft. Mesmo assim, não chegaram aos nossos dias as baixelas e as peças em prata do Palácio, uma vez que em 1924, aquando da reforma monetária e da criação do rublo convertível, foi fundido tudo o que era prata na Casa Imperial. Já conhecia bem o Palácio, uma vez que nele se realizou, há dois anos, uma sessão das Jornadas Europeias do Património, mas fiquei mais uma vez impressionado com a magnificência. Em Paulovsk, situa-se a residência privada de Paulo, o filho de Catarina II, construída em 1777, sob a influência da renascentista Villa Rotonda de Vicenza. Classicismo e império são os estilos que caracterizam a arquitectura da casa, onde se mistura a presença trágica do fugaz czar Paulo, assassinado em condições misteriosas (ou pelos favoritos da mãe, ou pelos partidários de Alexandre I, seu filho, ou pelos serviços secretos britânicos receosos das suas simpatias bonapartistas), com o equilíbrio das decorações, desde o Salão oval com a cúpula, à semelhança do Pantéon de Roma, até às salas grega, da guerra e da paz, hoje usadas para concertos e cerimónias oficiais. O estúdio da czarina Maria Feodorovna, mulher de Paulo e mãe de Alexandre I e de mais 9 filhos, tem uma curiosíssima decoração egípcia (como noutros pontos do palácio), fazendo jus à moda que se divulgou nos meios mais cultos da Europa depois da expedição científica de Napoleão Bonaparte.
Quatro horas, com tempo bom mas frio, numa estrada ladeada de choupos, bétulas e abetos, antigas casas de madeira com precárias instalações da sauna russa, foram necessárias para chegarmos a Novgorod, a cidade histórica do século X, matriz da cultura russa, com o Kremlin medieval de muralha oval, o Museu de História e Arquitectura, os templos da Intercessão da Virgem e de Santo André e a imponente catedral bizantina de Santa Sofia, o mais antigo templo cristão da Rússia. Sentimos o confronto, o contraste e a ligação entre o Oriente e o Ocidente, porque a cidade se manteve livre num território dominado pela Horda de Ouro. Foi daqui que o Príncipe viking Rurik partiu para sul, no sentido de Kiev, para assegurar a ligação entre o Mar do Norte e o Sul, pelo Neva, Lago Ladoga, Volkhov, Lago Ilmen, Dniepr, Mar Negro, Volga e Mar Cáspio. Esta decisão viria, aliás, a deslocar o eixo de gravidade para a actual capital da Ucrânia, mais perto de Bizâncio. É para recordar essa decisão que foi erigido em 1862, em Novgorod, o Memorial do Milénio da Rússia, segundo projecto de Mikhail Mikechine, onde estão as grandes referências da história do império, desde Rurik ou do Príncipe Vladimir (mas não Ivan, o Terrível), até Alexandre Nevski e Pedro, Grande, passando pelos grandes artistas e poetas. Ainda que, na passagem do primeiro milénio da nossa era, Novgorod tenha hesitado em manter-se fiel à Igreja Católica de Roma, seguiu o caminho bizantino. Na organização de Santa Sofia, pontificam S. Constantino e sua mãe Santa Helena, há tribunas para os príncipes à semelhança de Constantinopla, um rico iconostase tem belíssimas imagens desde os patriarcas e profetas até aos santos locais, sob a bênção de Cristo Pantocrator e da Virgem do Sinal, cujo ícone do século XII salvou, segundo a tradição, a cidade de arremetidas inimigas. Novgorod fala do passado. Os templos, o museu da arquitectura da madeira, as constantes referências históricas chamam-nos para a “ideia russa”.
Regressados à cidade do Neva, usufruímos ainda da arquitectura de Rastrelli, no Palácio de Pedro (Peterhof), junto do mar Báltico, onde os jardins são absolutamente espectaculares, com labirintos, quiosques, fontes, levadas e repuxos e o Palácio neo-clássico, reconstruído por Catarina II, reserva-nos ainda o mais inesperado dos requintes. As impressões finais apenas reforçam o carácter da cidade – a catedral de Kazan replica S. Pedro de Roma e a Madeleine de Paris; o Santuário de Santo Alexandre Nevski ressuma o espírito ortodoxo; a Kunst Kamera de Pedro o Grande, com o observatório astronómico e os museus antropológico e das curiosidades demonstram uma antiga intenção modernizadora. Deixamos S. Petersburgo, com sol e um tremendo engarrafamento em Nevski Prospect, e passamos pelo Palácio dos Stroganov, sempre de Rastrelli, e não podemos deixar de lembrar, não o cozinheiro que inventou os bifinhos para satisfazer um conde com problemas de dentição, mas uma portuguesa de fibra – a condessa Juliana Luísa de Oyenhausen (1782-1864), filha da Marquesa de Alorna, que casou em 1828 com Grigory Stroganov e viveu nesta cidade fantástica, de que agora nos despedíamos.
Guilherme d’Oliveira Martins