A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de Outubro de 2008.
Miguel Veiga acaba de publicar “O Meu Único Infinito é a Curiosidade” (Portugália Editora, 2008) onde podemos encontrar um conjunto de textos escritos em diversas ocasiões e por múltiplas solicitações, que nos revelam a personalidade multifacetada do cidadão empenhado, que pratica activamente o gosto pela vida e que faz do cosmopolitismo e do amor da cultura uma característica fundamental da sua personalidade e do seu modo de estar. Baptista-Bastos diz dele: “homem de compromissos éticos e ideológicos, que detesta todo tipo de mortificações, sempre me pareceu um garimpeiro de felicidade”. Pelos temas e pelas memórias que ele invoca temos oportunidade de lembrar o século XX português, centrado na cidade do Porto, mas projectado para além dela, num registo inconformista, que nos permite compreender o “Porto Culto” que chegou aos nossos dias.
Fotograma de “O Pintor e a Cidade” (1956) de Manoel de Oliveira (com António Cruz).
«SE DO MIGUEL TENTARMOS SURPREENDER o ‘retrato em movimento’ (diz-nos Vasco Graça Moura), veremos que o sólido bom senso não prescinde dos voos da fantasia nem do rasgo sonhador, romântico e visionário, que uma certa propensão sibarita e hedonista não desvaloriza o lado comezinho e terra-a-terra, que o militante das grandes causas não perde o sentido crítico, que o lado por vezes blasé de ‘quem muito viu, amou, passou trabalhos’, como diria Sena, não faz esmorecer os encantamentos e muito menos os entusiasmos». É assim Miguel Veiga, no retrato rigoroso de quem bem o conhece de muitas andanças. Na sua obra, notamos, a cada passo, o Porto, como nas aguarelas de António Cruz (uma das quais faz capa deste livro, que tem direcção gráfica de Armando Alves e coordenação de José da Cruz Santos). As impressões fortes estão bem presentes, em claro / escuro, sempre com uma enorme liberdade de espírito, de alguém que, antes de tudo, ama uma atitude liberal, não confundível com o culto de qualquer fundamentalismo de mercado, porque para ele fundamentalismos e fanatismos são coisas de que se mantém muito distante, por princípio, por natureza e por regra de higiene mental e ética. Daí o seu republicanismo de boa cepa, a confirmar no caso do Porto que a cidade fiel a D. Pedro IV foi, no dizer de Jaime Cortesão, a única cidade-estado que tivemos, ciosa sempre dos seus direitos e prerrogativas, nunca disposta a deixar-se vencer por questões de oportunidade ou de circunstância. Afinal, foi “o espírito da liberdade que derrotou o malfadado e afadistado desânimo sebastiânico”.
A FORÇA DO DESEJO – Para que não houvesse dúvidas sobre a sua atitude, o autor pôs no pórtico do livro, entre outras citações, esta de Léon Bloy, que o retrata bem: “A verdadeira pátria dos homens é o seu desejo”. Daí que Miguel Veiga fale da curiosidade como seu único infinito, e aqui está um autêntico programa de vida, de quem não quer fechar-se em qualquer rotina ou inércia, desejando, sim, trincar a própria vida para melhor a usufruir, não como algo sem sentido e horizonte, mas como algo que tem valor próprio e que temos de descobrir permanentemente. Por isso, o seu culto especial da amizade, que perpassa nos textos fundamentais e mais sentidos. E permito-me destacar a invocação muito sentida da memória de António Rocha Melo (nosso querido amigo comum), personalidade extraordinária de médico e humanista sobre quem afirma: “Ele sabia que o humor é o caminho mais curto de um homem a outro. E que fazer humor é transformar a vida numa larga e tolerante benevolência, próxima da caridade”. Estas palavras dizem bem de quem escreve e do peso do infinito da sua curiosidade – que é muito mais do que um culto céptico e crítico. Sobre José Cardoso Pires fala, assim, de “não aceitar um só caminho, um só combate, sempre na tentativa de compreender a diversidade dos homens, de respeitar e suportar a liberdade humana, de encarar e defender o homem como realidade dividida”. E sobre ele mesmo diz: “As letras são a minha respiração. Umas quase três dezenas de milhares forram a minha casa. São as minhas amarras e as minhas nuvens. Tenho o prazer dos livros e do cheiro e tacto dos livros e coabito com eles (os segredos do coração e o feitiço dos livros) pelas paredes cobertas de estantes e dos livros pelo chão pelas cadeiras, mesas, sofás, armários, vãos de escadas e até no quarto de dormir, na mesa-de-cabeceira e na margem da cama, numa desarrumação incontornável e irremediável, os livros são uma evidência: mesmo quando não lidos estão ali, murmuram, são nossos, são meus”…
ENCRUZILHADA DE AMIGOS – Ao lermos a sua evocação de Francisco Sá Carneiro, sentimos a memória em carne viva, falando de uma amizade com contornos dramáticos, uma vez que há cumplicidade e sentido crítico, proximidade e distância, afinal todos os ingredientes de uma verdadeira amizade. “A morte só não é separável da vida por virtude e pela força da memória. Sobretudo quando a nossa relação com quem partiu foi intensa, densa e significante pela nossa vida fora e pela nossa vida dentro”. E notamos a admiração e o respeito: “foi um grande advogado que simbolizava a liberdade, representava um contra-poder, afirmado pela sua coragem, sua independência, a sua autonomia, a sua competência”. Uma vida velozmente vivida, a procura de antecipar e de decidir, o entendimento de que política sem ética é vergonha, o culto da liberdade e a vivência da advocacia como profissão libérrima, tudo isto se entende na personalidade de Sá Carneiro. E também a este propósito Miguel Veiga cita Leonardo da Vinci, numa frase de que gosta especialmente: “Deus quis dar uma irmã à lembrança e chamou-lhe esperança”. E, ao elogiar os seus amigos (nossos amigos) Sobrinho Simões e Rui Mota Cardoso e o IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto), teve a ideia felicíssima de pedir palavras emprestadas a Fiama Hasse Pais Brandão: “A partir deste castelo indefinido preenchido por milhares de imagens descubro que a noção de fantástico é de novo uma perspectiva essencial da realidade”. Sobre o Porto, cidade de Garrett, lembra: «Nós amamos o Porto. Insisto e sublinho: nós amamos o Porto. Porventura de mais. Só que, quem não gosta de mais, não gosta bastante. Há meses escrevia-me a minha amiga, a genial Agustina: Miguel, meu amigo, do Porto ou se gosta ou não se gosta. E, ponto final. Na verdade, se nos pedem razões, mais simples e radical é responder-lhes com as palavras do Senhor de Montaigne: ‘Parce que c’était lui, parce que c’était moi’». E basta recordar o que, justissimamente, dizia Eugénio de Andrade: “a cidade o que tem, sobretudo, é carácter, um carácter que faz do cidadão do Porto o mais belo estilo de ser português”… Aqui se desenha um carácter, aqui se define uma personalidade, aqui se identifica uma vontade. Vasco Graça Moura resume emblematicamente: “Entre o granito e a dor: afinal todos somos do Porto ou, pelo menos, todos fomos do Porto alguma vez na vida”. E Mário Cláudio: “O Porto nasce e morre connosco, igual ao mais insatisfeito de quantos desejos nos visitaram”. E Sophia dizia: “o Porto é a pátria dentro da pátria”. É assim o Porto, para Miguel Veiga e para quantos amam verdadeiramente a cidade. Não nos deixa indiferentes, e se tem uma luminosidade própria, sabemos bem como o Douro no Freixo, na Ribeira ou na Foz reflecte esplendorosamente o sol nos dias mais gloriosos.
O CARÁCTER, ANTES QUEBRAR QUE TORCER – Miguel Veiga percorre os seus afectos. Aquilino é lembrado na “Casa Grande de Romarigães” – “o que convulsiona o mundo é o atrito entre a consciência do ser livre e a restrição imposta por quem se julga detentor da verdade e senhor do mando”. A pintura de António Cruz é elogiada – “esse admirável aguarelista que viveu e pintou feroz e solitariamente isolado e livre, possuído por aquela liberdade livre, sempre sobreviveu desencostado de vanguardas e capelinhas, numa postura de altiva serenidade dos que não se alinham nem se agacham”. É o pintor e a cidade que a cidade revela e que revela a cidade… De José Cruz Santos, o prodigioso criador de livros, recorda o seu mester e o modo magnífico como dele se desempenha: “é incontável o que lhe devem a nossa cultura, a literatura, todos nós, sem distinções de credos nem de gostos”. E há outras justas evocações (José Rodrigues, Eduardo Paz Barroso…). Do que se trata é de reconhecer que a cultura é coisa de pessoas!
E ouça aqui as minhas sugestões na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins