A VIDA DOS LIVROS
De 6 a 12 de Outubro de 2008
Realizar o Congresso sobre a obra de Eduardo Lourenço constituiu um desafio apaixonante. Antes do mais, havia que pôr a tónica no autor e nos seus escritos, mas também importava abrir para o grande público a reflexão e o estudo, que hoje se desenvolvem em torno de um percurso intelectual, felizmente longo e fecundíssimo, que abrange um conjunto vasto de temas e problemas que relacionam cultura e vida, Portugal, a Europa e o Mundo. O CNC, que recebeu nos anos cinquenta, das primeiras conferências em Lisboa de Eduardo Lourenço, por iniciativa de Fernando Amado, Afonso Botelho e Almada Negreiros, e que nos anos sessenta esteve intimamente ligado à revista “O Tempo e o Modo” e nos anos setenta à “Raiz e Utopia”, que contaram com a presença constante e luminosa do autor de “Labirito da Saudade”, entendeu dever lançar uma iniciativa que não é de comemoração, mas de justa e necessária reflexão e de apelo à leitura e ao conhecimento de uma obra e de um autor, referências fundamentais da cultura portuguesa contemporânea. E posso dizer que, na concretização desta ideia, houve desde o primeiro momento o apoio inequívoco, o entusiasmo da Fundação Calouste Gulbenkian que viabilizou com enorme generosidade este Congresso.
Eduardo Lourenço
Eduardo Lourenço é um interrogador permanente. E se escolheu o ensaísmo como seu território por excelência, fê-lo por certo para manter sempre em aberto o ponto da sua reflexão. E o certo é que o ser um cultor permanente de um pensamento vivo e aberto leva-o a privilegiar a atenção à realidade que o cerca. E se muitas vezes se disse que falta uma obra sistemática de E.L., a verdade é que nos fica a evidente sensação de que estamos perante a riqueza multifacetada, que se vai completando, dos seus textos e intervenções (e verificámos, à medida que os procurámos, haver ainda muitos textos fundamentais inéditos). À maneira de Montaigne, e seguindo os seus passos, Eduardo Lourenço desejou para si este permanente movimento nómada (numa sociedade que redescobriu o movimento) de não se deixar encerrar na tentação das conclusões definitivas. E é isso que engana alguns leitores apressados, na ânsia de encontrar para Eduardo Lourenço uma classificação, uma topografia ou uma orientação escolástica, incompatível consigo mesmo. Eduardo Prado Coelho, cuja presença aqui sentimos muito viva, disse melhor do que alguém o poderia ter feito: «Porque se move, escreve. E dos blocos desgarrados dessa escrita resultam livros que surgem como provisórias plataformas de encontro em que, como diz E. Lourenço, criticado e crítico amorosamente se justificam pela ‘invenção mútua da existência’» (Prelo, Maio de 1984). Dir-se-ia que é essa “invenção mútua da existência” que interessa (que sempre interessou) ao nosso ensaísta. O mundo descobre-se nas suas diferenças, nos subtis movimentos das pedras do caleidoscópio. E o que importa descobrir é a relação entre os vários elementos, para detectar as grandes tendências e os sentidos, os mitos e as realidades. Fernando Gil, com a argúcia que o caracterizava (e que não podemos também esquecer hoje) falou de um “tom” – e de “uma desenvoltura serena, a preocupação em ser justo, inclusive em relação ao marxismo. Nenhuma impertinência suspeita, nenhum deslize ad hominem davam azo a desconfianças” (ibidem). Este é um elogio maior, sobretudo porque reportado a um tempo em que Fernando Gil desconfiava da “Heterodoxia”, de que viria a aproximar-se, já sem equívocos, na década seguinte. Mas, mesmo nos processos de aproximação ou de encontro, Eduardo Lourenço quis sempre preservar o seu lado inconformista e inclassificável, sempre pronto a querer surpreender-nos com um trajecto diferente, um ponto de vista diverso daquele que estamos à espera. Olhemos o símbolo deste Congresso. Símbolo da atitude assumida pelo autor que nos ocupa. “Fiel ao símbolo que a representa e à vida que nele se manifesta, a heterodoxia não é o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos. É o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles é na realidade o melhor de todos os caminhos”.
Eduardo Lourenço é um dos grandes escritores portugueses contemporâneos. Fala-se com justiça do pensador, refere-se o ensaísta, o crítico, o analista, mas é fundamental que se enalteça o artífice magnífico da língua portuguesa – usando poética e romanescamente as palavras e exercendo sobre nós fascínio e magia que nos levam, em vez de nos inebriarmos, a ver mais nitidamente ou a sermos levados a olhar de um outro ângulo e com uma outra atenção. Sophia tinha razão ao afirmar que “na sua prosa há uma luminosidade que lembra a pedra trabalhada pelo ponteiro”. Que mais se poderá dizer? As palavras encontram-se naturalmente com as ideias e flúem num movimento que nos leva, em aproximações sucessivas, ao cerne a que o escritor nos pretende conduzir, de modo interrogativo, na formulação de uma hipótese ou numa asserção convincente. Num texto não publicado em livro e inserido em “O Comércio do Porto” no ano de 1957, sobre uma apologia de Sampaio Bruno, Eduardo Lourenço dizia significativamente, como que lançando um aviso à navegação: “De algum modo o amor não erra nunca, pois o erro é amor deficiente. Por outro lado só ele faz existir!”. Com estas palavras, o ensaísta punha a questão fundamental da atitude aberta e heterodoxa. Longe das simplificações ou das ilusões rotulatórias, haveria que estar sempre atento e disponível para o sentido crítico e para a capacidade de ver para além do que positivamente nos é dado. E, para compreendermos o sentido e o alcance deste alerta, temos de dizer que há em E.L. uma projecção muito evidente de Antero de Quental, a figura da cultura portuguesa que mais intensamente marca e influencia o pensador. A contradição é um fenómeno apaixonante para o nosso escritor e a necessidade da sua compreensão leva-o a demarcar-se com nitidez de quantos se limitam a ver o lado nocturno ou pessimista, ou a salientar o suposto falhanço humano e institucional da Geração de 70, em vez de considerarem (como ele pretende) que a modernidade se cria inacabada e crítica, histórica e futurista, capaz de interrogar a finalidade e a ausência de finalidade, o sentido e o sem-sentido. E diz-nos Eduardo Lourenço: “A configuração trágica da obra e da vida de Antero – a primeira entre nós que assumiu esse perfil – é odiosa a gregos e troianos (…). A nossa cultura, tradicionalmente contemplativa e ontologicamente feliz, suporta mal um desmentido à sua mitologia como o representado por Antero. Amigos e inimigos, à esquerda e à direita, com raras excepções (…) preferiram dissolver o trágico”. (“A Noite Intacta”, 2000, p. 69). Esse enigma anteriano revive em Eduardo Lourenço, inquieto na capacidade de tentar compreender a um tempo Apolo e Dionísio, a luz e a treva, o arcaísmo e a modernidade, mythos e logos, o sagrado e o profano.
Muito se tem discutido sobre o sentido e o alcance para Portugal dos dias de hoje, do legado dessa linhagem singular que vem de Antero e da sua Geração. E.L. dá-nos a chave: “todos saíam, ao menos em imaginação, do pequeno Portugal com ideia de lhe abrir o espaço confinado e o desprovincializar. A época era, na Europa, cosmopolita, e a Europa entrara, sem problemas de consciência, na sua época de imperialismo colonial, pacífico ou guerreiro”. O tempo andou e a abertura de horizontes foi limitada, e o mito sebastianista reimplantou-se por fechamento e incapacidade – enquanto a Geração de 70 ou a primeira “Seara Nova” procuraram exorcizar o mito (como expressão póstuma da identidade)… Mas a verdade é que E.L. procurou dar sentido positivo, moderno e europeu a um destino que (sem reflexão crítica e sem recriação) corre o risco de se auto-justificar e de se esgotar. Por isso, prefere evitar pôr em causa, como se estivesse de fora, o “reino cadaveroso”, de que falava António Sérgio, com excessiva abstracção e moralismo, antes optando por partir da realidade que somos e dos mitos que temos, ou seja, da imperfeição (que qualifica de “maravilhosa”), recusando o fatalismo do isolamento ou do atraso, sobretudo quando mascarado de auto-satisfação. A “psicanálise mítica do destino português” não recusa os mitos, mas desconstrói-os criticamente. Seguindo os passos de Fernando Pessoa, personalidade múltipla, que o fascina sobremaneira, contraditória, ambígua, revisitando-a e reconstruindo-a, Eduardo Lourenço procura compreender a nossa identidade colectiva, olhando-a, adivinhando-a, diagnosticando-a, descobrindo-lhe enfermidades e virtudes, partindo do visível para o invisível. E segue a própria personalidade do autor do “Livro do Desassossego”: “Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa que descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. E como os deuses lhe concederam um olhar imparcial como a neve, o retrato que nos devolve do fundo do seu próprio espelho brilha no escuro como uma lâmina. Quando encarnada em figuras que parecem vivas – e ele supunha mais vivas do que ele – essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia”. E essa heteronímia torna-se chave para a revelação das contradições e dos complementos. Afinal, também temos de procurar falar, tornando-nos como que outros. E se não possuímos o olhar da neve, ao menos somos chamados a ouvir e a ler, com especial atenção, aqueles que, sendo dos nossos, falam-nos com lucidez e inteligência, com talento que permite superar a normal mediania. Se fomos capazes de ter Camões, Antero, Pessanha ou Pessoa, então somos chamados à responsabilidade de os ouvir atentamente e de inserir a sua sensibilidade na nossa razão. O caminho dos mitos ao logos obriga a essa atenção e a esse cuidado. E Eduardo Lourenço faz parte dessas vozes que permitem o despertar do sono letárgico e a transformação do sonho em força de vontade.
Ao confrontar Kierkegaard e Antero e depois o dinamarquês com Pessoa, Lourenço coloca-se a ele mesmo nesta interrogação de máscaras – “a paixão da subjectividade infinita que caracteriza o homem, segundo Kierkegaard, não tem o perfil harmonioso, conciliante, de uma certeza racional: é um grito do Eu ameaçado no seu projecto, de um indivíduo único que não pode salvar-se senão aceitando o paradoxo, quer dizer, renunciando às consolações racionais à maneira de Hegel, à ideia de que tudo na vida humana se processa por mediação, superando antagonismos necessários mas provisórios em vista da síntese redentora, pessoal ou histórica” (“Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera”, 2008, p. 141). Eis como se torna apaixonante falar e pensar sobre Eduardo Lourenço, mestre da inquietação e da permanente capacidade de perguntar. Mas deixem-me que tenha uma palavra especial para Annie, que bem gostaríamos de ter hoje aqui, pela presença ao lado de Eduardo Lourenço e pelo papel extraordinário que tem desempenhado em prol da cultura portuguesa. E Eugénio de Andrade diz-nos: “só as árvores não eram vulgares; de tão Formosas, tornavam o céu de cristal, como se o verão fora imortal entre plátanos e choupos”… Obrigado Eduardo!
Guilherme d’Oliveira Martins
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