A VIDA DOS LIVROS
De 29 de Setembro a 5 de Outubro de 2008.
António Quadros no seu utilíssimo “Uma Visita à Rússia – Impressões e Reflexões” (Lisboa, 1969) afirma recordar «as multidões sorumbáticas e caladas com que me acotovelei (…) no metro de Moscovo, no Gum (grandes armazéns), na Exposição dos Progressos Soviéticos. Recordo os sonhos, as aspirações, as exaltações, as euforias e a animação dialéctica dos livros de Gogol, Dostoievsky, Tolstoi ou Tchekov. Total desfasagem. No entanto, o povo russo sabe recolher-se nostalgicamente na sua ‘ducha’ (a alma individual), faz sentir o seu espírito religioso nas tão belas melodias folclóricas que continua a cantar (…). Acorre às manifestações artísticas, ainda que estas sejam quase sempre muito convencionais – e é capaz de produzir na clandestinidade, obras de génio e liberdade, como ‘O Mestre e Margarida’, ‘Doutor Jivago’ ou ‘O Primeiro Círculo’». A desfasagem começa, no entanto, a desaparecer com a abertura de fronteiras. Premonitoriamente, à distância de quarenta anos, o ensaísta soube captar o essencial de uma sociedade que estava apta a renascer, pelas suas raízes. Sentimo-lo nos dias de hoje. O espírito da abertura de horizontes vai regressando.
O Kremlin de Moscovo
Nos painéis de azulejos da Graça Morais que visitámos, há rostos de gente comum, de uma beleza e de uma simplicidade tocantes, que contrastam com as representações dos operários e dos camponeses, dos soldados e dos marinheiros, com as foices e os martelos e as estátuas épicas. Há, no fundo, nestes azulejos um apelo à humanidade e a Moscovo, como uma cidade diferente, de pessoas concretas, de uma Europa que não poderemos esquecer e que tem uma especificidade muito própria. Já falámos de Damião de Góis em Cracóvia e hoje começamos por falar de Graça Morais, autora dos painéis de uma das entradas da estação do metropolitano de Moscovo Bielorusskaya, uma das mais importantes e emblemáticas de uma rede que foi concebida em termos monumentais, num estilo neo-clássico e realista. Se somos transportados na velha e mítica estação, numa viagem histórica, à cidade dos anos cinquenta, sob o império de Estaline, o invocado pai dos povos, num sobe e desce de extensas e profundíssimas escadas rolantes, o certo é que, com a obra de arte da pintora portuguesa, tomamos contacto com a modernidade e o cosmopolitismo. Nas peregrinações dos portugueses ao encontro da sua história, do Centro Nacional de Cultura, não é, assim, apenas o passado que nos importa. Chegados a Moscovo, entrados no Hotel Metropol, ingressamos num outro mundo. Não esquecemos que o Metropol foi um dos estabelecimentos de luxo que albergaram após a revolução de 1917, por falta de edifícios condignos numa cidade já esquecida de ter sido capital, o governo bolchevique de Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine. A cidade é uma metrópole relativamente recente. As primeiras referências dos cronistas datam do ano em que Lisboa estava a ser conquistada aos mouros (1147). A criação do burgo deveu-se nesse século XII à iniciativa de Yuri Dolgoruki, filho do grão-duque de Kiev, Vladimir Monomarkh, e as fortificações do Kremlin na colina de Borovitskii datam do século XVI. O calor do sul da Polónia cedeu lugar a um tempo mais instável nesses primeiros dias de Setembro. Depois de um jantar acolhedor, na monumental sala de jantar do hotel, passeámos nas imediações da Praça Vermelha e em frente ao Teatro Bolshoi. Uma ligeira e quase imperceptível chuva miudinha não nos perturba o passo e é passageira. A imponente estátua equestre de Georgy Zhukov, recorda-nos o herói da batalha de Moscovo de 1941, momento crucial da última guerra. Mas em Moscovo o que se discutia era a crise da Geórgia. Nos dias em que estivémos na cidade houve um corrupio de líderes políticos. Negociava-se a concretização de um “modus vivendi” que permitisse a retirada de tropas russas da Geórgia, apesar do incómodo reconhecimento da independência da Abecásia e da Ossétia do Sul. E sentimos que as intenções imperiais regressam por fidelidade à História. O sol espreita timidamente, por entre castelos de nuvens. De manhã, iniciamos a jornada com o render da guarda junto ao túmulo do soldado desconhecido. Os soldados muito jovens concedem-nos o seu melhor passo de ganso.
O Kremlin de Moscovo é, de facto, o símbolo do tal império que procura recuperar o prestígio antigo. As muralhas vermelhas servem tantas vezes de cenário de fundo a muitas crónicas de jornalistas especializados e a passagens de romances de espionagem do tempo da guerra-fria. Historicamente, esta edificação está associada a Ivan, o Terrível (1530-1585) que a guia, cuidadosamente, designava como temível, como mandam as boas regras. Recorda-se nas muralhas vermelhas a conquista do canato de Kazan (1552), última reminiscência da “Horda de Ouro” e do fim das glórias do povo tatar. Junto do canhão monumental de Ivan, recordámos a misteriosa e arrepiante morte de Demétrio (Dimitri), último filho e herdeiro possível de Ivan. Entre a responsabilidade de Boris Godunov e a hipótese de um acidente com uma estranha brincadeira de facas, tudo fica em aberto, num mar de dúvidas, neste tema funesto que tem entusiasmado historiadores e artistas. Ao visitarmos a Catedral das Coroações ou da Dormição da Virgem, deparamos com todo o esplendor da arte russa tradicional. Há longas filas de visitantes e grupos de todo o mundo cruzam-se num exercício de turismo de massas que ainda dá os primeiros passos, algo incipientes. Ícones representam mais de cem santos. Sentimos claramente a força da Terceira Roma, que sucede a Roma e a Constantinopla, como projecto eterno, à semelhança da Terceira Idade ou Idade do Espírito Santo, de Joaquim de Flora. O iconostase do templo apresenta-nos cinco níveis – o do Antigo Testamento, com Patriarcas e Profetas; o dos Apóstolos; o da Paixão de Cristo; o da Deesis (em torno da magnífica glorificação do Cristo Pantocrator e da Virgem Hodegetria, que indica a via libertadora ao apontar para Seu Filho, que é o Caminho a Verdade e a Vida); e, por fim, os ícones locais. As três catedrais do Kremlin de Moscovo representam, no papel que tiveram ao longo dos séculos, a sucessão dos ritos da vida: a da Anunciação era o local dedicado aos casamentos e baptizados da família imperial, a da Dormição da Virgem às coroações e a de S. Miguel Arcanjo ao rito da morte. Aí estão os túmulos de Demétrio, filho de Ivan, e de Pedro II, 1715-1730, morto de varíola no dia do casamento, o único czar que ficou em Moscovo, ao contrário dos outros que se encontram em S. Petersburgo.
Depois de homenagearmos Graça Morais e a sua obra-prima, dedicámo-nos, em imersão total, à Galeria Tretyakova, onde podemos usufruir da arte russa desde o século XII ao século passado. A colecção é um deslumbramento. É impossível fazer uma descrição em algumas linhas. Saliento, apenas, de Andrei Rublev, a Trindade do Antigo Testamento (1425-27), uma obra única, onde se nota a evolução da arte, no mesmo sentido que lhe deu no ocidente Giotto. As três figuras humaníssimas e serenas representam, à direita e à esquerda de Cristo, o Pai e o Espírito Santo, como personagens que assumem a mesma natureza do Filho. Se é verdade que a arte russa não teve um Renascimento, a verdade é que Andrei Rublev como que anuncia um caminho, que não veio a ser desenvolvido. As diversas salas da Galeria Tretyakova revelam-nos uma pujante criação artística, que sobretudo desde o movimento de abertura de Pedro, o Grande, é um nítido contraponto à criação europeia. Fiodor Rokotov, como grande retratista europeu, mostra-nos a poderosa Catarina II, Orest Kiprensky pinta-nos Pushkin (1827), Vasily Perov dá-nos o Dostoyevsky que conhecemos, com força e sentimento (1872), Ivan Kramskoy capta o olhar penetrante de Lev Tolstoi e Nikolai Ge dá-nos o mesmo romancista, já maduro, no exercício da escrita. Mas tudo culmina em Mikhail Vrubel o genial simbolista que parece anunciar tudo o que viria como sinal de modernidade. O “Demónio Sentado” (1890) e “Lilac” (1900) constituem explosões de sensibilidade, de movimento e de cor. A pujança artística multissecular, a criação literária e filosófica, a capacidade de ver o que é realmente importante não esmoreceu, como olhámos no Museu Pushkin, pela clarividência dos grandes coleccionadores do princípio do século XX (como Shchukin e Morozov, que apoiaram todas as novas tendências da melhor arte europeia, até Matisse e Picasso). E ao sair de Moscovo, com a pintura moderna da Museu Pushkin nas retinas, passamos pela casa do grande coleccionador Morozov – e, para os que desconheciam, aí está uma surpreendente homenagem ao Portugal romântico e revivalista do neo-manuelino e de Monserrate… Curiosíssima e paradoxal ligação simbólica…
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Guilherme d’Oliveira Martins