AO ENCONTRO DA SANTA RÚSSIA…
por Guilherme d’Oliveira Martins
Singularmente, o ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História” vem à Europa Oriental, com que temos relações antigas, desde que os nossos comerciantes se estabeleceram na Flandres e no Mar do Norte, chegando ao contacto da Liga Hanseática e dos povos do Oriente europeu.
Em Cracóvia de Copérnico, sentiu-se desde cedo a influência de matemáticos portugueses, como Pedro Nunes, na corte de S. Petersburgo afirmou-se o célebre Doutor António Ribeiro Sanches, junto de Catarina II, a Grande. Mas, por todos, lembramos um texto muito significativo, uma carta de admiração e de afecto, de Jaime Magalhães de Lima ao seu mestre Lev Tolstoi.
Oiçamo-lo: «Vindo á Russia, não pude roubar-me o prazer de visitar o conde Tolstoï, o famoso romancista que hoje todo o mundo conhece – afirma Jaime Magalhães de Lima no seu livro “Cidades e Paisagens”. «Como tantos outros estrangeiros, dirigi-me pois á cidade de Tula e daí a Yasnaia Poliana, propriedade e habitação de Tolstoï.
Em torno deste nome fez-se uma verdadeira lenda que representa o conde como um louco, fazendo sapatos e lavrando as terras. E na verdade tem não sei que de singular e de poético a sua vida». O texto evocativo é de fundamental leitura: «Um dia, um conde desse dourado império dos czars vestiu-se de mujique, e mais do que simplesmente, pobremente, foi esconder-se na sua aldeia e começou a ceifar o trigo, semear o grão e construir a cabana. Tinha tudo o que a vaidade ambiciona, uma fortuna imensa, um nome ilustre, uma mulher formosa e, sob traços grosseiros, uma rudeza viril aliada ao encanto dum olhar límpido em que brilhava a doçura que lhe vinha da alma. Sobre tantos dons da natureza e da fortuna tinha ainda um prodigioso talento de artista. Nada lhe faltava para conquistar a lisonja e a veneração do seu tempo, e esse homem, que podia ter uma corte de admiradores e turiferários, tudo deixou pelo trabalho da terra e pela companhia do aldeão, que há pouco ainda era seu escravo».
Jaime Magalhães de Lima não esconde uma profunda admiração: «O mundo viu com espanto tamanha abnegação, sorriu e, sem ousar dizê-lo, chamou-lhe loucura. Não o é; mas uma tal energia em conformar o sentimento e a acção surpreende numa época em que a simplicidade, a modéstia, a religião e o cristianismo, são essências preciosas para uso verbal e devaneios literários apenas. (…)
Vejamos brevemente que ideias e sentimentos levaram o conde ao novo claustro em que se encerrou. Dizia-me: Não conheço nações, há homens apenas; e a sua lei divina e cristã é a fraternidade. Por aí devemos regular as nossas acções e aferir o seu valor. Respondi-lhe que não me parecia que o espírito nacional fosse incompatível com a fraternidade. Tomemos um exemplo, a protecção industrial aduaneira, uma consequência do nacionalismo. Destrói a fraternidade? Não; pelo contrário, realiza praticamente uma equitativa distribuição de riqueza entre os diferentes povos e, se não, lembremo-nos dos efeitos da liberdade comercial que seria manifestamente a miséria para uns e a opulência para outros. Concedendo que dos motivos concorrentes na actividade humana, os motivos de ordem moral devem governar os da ordem natural ou física, temos que a fraternidade, o amor, ou como melhor deva dizer-se, carecem de dar aos últimos a satisfação devida para completa realização dos primeiros. E assim é necessário que para os povos haja nações, como para cada família uma casa. Erro! replica Tolstoï. Para lançar uma pedra sobre determinado ponto carecemos de apontar mais longe, e assim também, para vivermos segundo o cristianismo, precisamos não contar com os motivos de ordem natural. Eles se manifestarão espontaneamente; pensar neles é mal empregar a razão que deve guardar-se para as coisas superiores. Singular raciocínio, direi eu, que não quer contar com um elemento cuja existência reconhece! Por este caminho vamos ao niilismo, e Tolstoï era perfeitamente lógico quando acrescentava: Para que servem os governos? Se amanhã Moscovo e S. Petersburgo desabassem, que importava a esta aldeia? Seria inteira e completamente o que hoje é. E contava-me, como esclarecimento e demonstração, que da Rússia emigram famílias inteiras, e na simples carroça que leva todos os seus bens vão muito longe, à Sibéria e quase à China, fazer as colheitas. Com o produto desse trabalho levantam a casa, estabelecem uma lavoura nesses desertos incultos e são felizes até que o governo os descobre para lhes pedir impostos e os filhos para o exército».
Magalhães de Lima descreve o diálogo e transcreve-o com veneração: «Nova ilusão, a meu ver. Para que esta espécie de niilismo seja possível são precisas duas condições, terra em extensão superior ao pedido e a simplicidade de costumes do mujique. Desde o momento em que a terra necessite partilha, aí temos inevitavelmente um princípio de governo; e desde que a vida se complique, igualmente aparece a necessidade de uma actividade colectiva, uma força que mantenha a ordem, e preste os serviços comuns. O desenvolvimento e complexidade da civilização demonstram historicamente uma tendência irreprimível e, se esta prova não existisse, bastava atender aos apetites e desejos dos mais simples, para descobrirmos um início de evolução para a complexidade. Na choupana do mujique vamos encontrar um mealheiro e estampas coloridas a adornarem as paredes; entre essa choupana e a galeria de quadros do capitalista a relação é manifesta, uma contém o gérmen da outra. De forma que essa simplicidade, individualmente possível, é colectivamente impossível. O que não importa a negação de uma vida mais simples do que a actual, como fim último da civilização; o balanço dos prazeres e penas da plena expansão natural, combinado com os sentimentos piedosos e aspirações cristãs, conduzem a uma redução reflectida das nossas necessidades, mas entre esta e o estado primitivo há uma enorme diferença que devemos ver e pesar; e, sendo a simplicidade consciente um produto superior da civilização, seria erro esperá-la do vulgo que para a atingir carece de ser educado. Deste último facto a necessidade de governo e instituições educativas, que não serão portanto um mal e uma desobediência á doutrina cristã, mas sim a condição da sua realização prática. (…) Repeti (…) que a religião me parecia a maior força do moscovita. É e não é religioso, respondeu-me o conde. Entre Gogol e Beliensky levantou-se um dia essa questão e estou em dizer que ambos tinham razão. Se julga pelo número das igrejas e pela sua concorrência, dir-lhe-ei que o russo não é religioso; isso é um hábito, como o álcool ou o chá, sem maior significação psicológica. Mas acontece que, diferentemente do que sucedeu com a Igreja romana, traduzimos o evangelho há novecentos anos e as suas máximas divulgaram-se no povo em que ainda agora actuam energicamente. Por este lado a Rússia é um país religioso.
Se me é dado acrescentar alguma coisa, direi que o é ainda por outro lado, o fundo fatalista, Deus, Acaso, Providência, negação da previdência e reconhecimento de uma vontade superior incognoscível. O próprio conde Tolstoï representa esta feição. Mostra-a nas suas obras e conversando comigo sobre as formas futuras da propriedade, disse singelamente: – Quem pode prever o que acontecerá daqui a vinte anos? Ao ver o entusiasmo com que Tolstoï me mostrava a aldeia e as habitações do mujique, ouvindo falar dos campos e das searas, fazendo a apologia ardente do trabalho braçal como tónico indispensável para o corpo e para o espírito, comparando os actos e as palavras, pareceu-me que os grandes sentimentos que determinaram o seu modo de viver tão anormal, foram o amor da terra e a humildade cristã. Conhecendo profundamente toda a sociedade e a alma humana, só aí encontrou paz e satisfação á sua consciência, e por isso envergou o habito e professou nessa nova religião».
Jaime Magalhães de Lima deixou-se fascinar pelo ambiente e pela cultura russa: «Enquanto Moscovo parece ter saído da terra como o desenvolvimento natural e fácil dos germens que continha, S. Petersburgo mostra uma vontade, um esforço de adaptação a hábitos, costumes e formas estranhas, reflectidamente julgados melhores. É uma cidade afrancesada, como de resto o são todas as cidades modernas. Há muito passou ao domínio da banalidade extasiar-se a gente perante a vastidão de S. Petersburgo; mas essa vastidão é única no mundo, e por isso não importa repetir o facto, porque vê-la será sempre uma impressão surpreendente. Entre o Neva abundante e profundo a espraiar-se num amor bárbaro, insaciável de terra, ao fundo dessas planícies infindas povoadas de florestas e aldeias, para encerrar a coroa que liga as neves do Himalaia ás neves do Báltico era necessária uma cidade, cuja vastidão eclipsasse todas as capitais do mundo. Ruas, igrejas, palácios, pontes e cais, tudo é duma largueza única. Todavia, através dessa grandeza, que é porventura espontânea, e através da imitação do ocidente, que é manifestamente pensada e deliberada, transparece certo sabor do torrão, qualquer coisa de bárbaro. (…) A rua é um hipódromo de bárbaros, no trenó o quadro será completo; a carruagem não é ainda uma comodidade, é um meio de andar rapidamente. Nessa vastidão da Rússia é preciso voar para não morrer antes de chegar ao ponto de destino».
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