A VIDA DOS LIVROS
De 28 de Julho a 3 de Agosto de 2008.
“Ensaios sobre a Educação” de António Sérgio, com prefácio de Manuel Ferreira Patrício (2008), e “O Essencial sobre António Sérgio” de Carlos Leone (2008) são duas das mais recentes publicações da Imprensa Nacional – Casa da Moeda (IN-CM), que constituem obras muito oportunas e adequadas para o melhor conhecimento de uma das mais significativas referências culturais e cívicas da primeira metade do século XX. Através destes textos retoma-se o contacto com alguém que não pode ser esquecido. Como diz Carlos Leone, o estigma intelectual do «carácter de “mito da razão”, que Eduardo Lourenço lhe atribuiu» num célebre texto de 1969 em “O Tempo e o Modo”, determinou desconfiança perante o ensaísta, sendo certo que a “diminuição do estatuto intelectual e simbólico que a imputação de uma natureza mítica causou ao racionalismo de Sérgio foi imediata, profunda e duradoura”. No entanto, depois desse primeiro impacto, com efeito evidente nos últimos quarenta anos, estamos em condições de redescobrir o lugar importante que Sérgio ocupa na cultura portuguesa contemporânea.
UM INCANSÁVEL PEDAGOGO
António Sérgio (1883-1969) nasceu em Damão, originário de uma família fidalga do liberalismo, tendo sido seu avô ajudante de campo do rei D. Luís e governador geral do Estado da Índia. Depois de ter estado em Angola, onde seu pai esteve colocado em missão, foi aluno do Colégio Militar e alistou-se na Armada, seguindo a tradição familiar. Após o curso da Escola Naval, vai para Macau (1905), viaja para Newcastle (1906) e é colocado na Estação Naval de Cabo Verde (1907). Em Junho de 1910 casa com Luísa Epifânio da Silva, visita Paris, e aquando da implantação da República defronta-se com um dilema moral, agravado pelo suicídio de um seu grande amigo, Frederico Pinheiro Chagas. Optará pela actividade de publicista e pedagogo, dirigindo a revista “Serões” (1911) e aproximando-se da Renascença Portuguesa e de Jaime Cortesão e Raul Proença. Dedicado à actividade editorial e interessado pelos estudos pedagógicos, vai-se afastar do magistério de Teixeira de Pascoaes em “A Águia” e do saudosismo. A polémica tornar-se-á, aliás, a partir de então, um dos terrenos por excelência em que Sérgio se afirma. Depois da derrota do sidonismo, no qual o ensaísta acreditou, o pensador regressa ao estrangeiro (Brasil e Suiça). Raul Proença desafia-o, porém, a vir e a entrar na “Seara Nova”, o que acontece. A primeira metade da década de vinte será, assim, de intensa participação política, exercendo A.S. fugazmente no governo presidido por Álvaro de Castro a pasta de Ministro da Instrução Pública. Depois do 28 de Maio de 1926, intervém activamente na oposição ao novo regime, designadamente na Liga de Paris. Regressado a Portugal iniciará um longo magistério cívico e pedagógico, apesar de estar na incómoda posição de ser contestado pela direita e pela esquerda neo-realista. O fim da Guerra parece oferecer uma oportunidade ao ensaísta e activista político, que tem papel muito activo na tentativa de criação de uma oposição social-democrática. A candidatura do General Humberto Delgado será, aliás, resultado de uma intervenção decisiva de Sérgio…
UM INTELECTUAL COMPROMETIDO
O pensamento filosófico de A. Sérgio, desde a juventude, situa-se na reacção ao cientismo naturalista e segue a esteira de Antero de Quental, desde o anti-positivismo à busca de um programa cívico e pedagógico. Contudo, é o idealismo crítico de raiz neo-kantiana que constitui o elo durável entre as diversas intervenções filosóficas. A sensibilidade empírica da actividade mental, o conhecimento que temos do mundo exterior, a espontaneidade da actividade mental organizadora, por comparação, de conceitos e noções e a realidade mental que precede a ciência levam à posição idealista que permite considerar a faculdade mental como a própria unidade da consciência. E a razão torna-se, por definição, especulativa, espiritual e prática. Mas esta razão não pode esquecer as preocupações éticas – daí o carácter não egoísta do individualismo sergiano e a consideração do carácter de uno unificante que a razão possui. O ensaísta procura, assim, permanentemente um sistema completo capaz de responder universalmente aos anseios da humanidade, o que obriga à consideração da ligação intrínseca entre liberdade e coesão social. E, como “intelectual comprometido”, António Sérgio considera que as diversas facetas da modernidade constituem desafios permanentes de carácter cívico e ético. De facto, o pensador acredita “na capacidade de reformar para reeuropeizar a cultura portuguesa” e recusa uma técnica sem mundivivência filosófica – contrapondo a visão histórica do isolacionismo à perspectiva do cosmopolitismo e da abertura. Por isso, gostava de citar Goethe, para quem a História é um meio de nos livrarmos do passado, “e, desde muito cedo, insistia que no caso português havia mortos que era preciso matar, para os enterrar definitivamente”. E, não sendo historiador de profissão, usou a História para tentar desvendar os mistérios da inércia colectiva. Assim, para ele, eram fundamentais os portugueses que mantiveram a sua ligação à modernidade europeia, apesar do isolamento do país à custa do auto-exílio ou de uma acção semi-clandestina em Portugal, e o “escol (de intelectos, não de minorias sociais privilegiadas, como Sérgio insistia) que ainda antes do isolamento colheu ensinamentos necessários à expansão e que deve servir de exemplo para o novo escol ambicionado por Sérgio (diz Carlos Leone) para, em termos similares, se formar do exterior do país, para depois retornar a ele e contribuir para a sua modernização, sinónimo de europeização”.
A IMPORTÂNCIA DOS ESTRANGEIRADOS
A noção de “estrangeirado” assume em Sérgio pertinência não pelas mentalidades mas pelo carácter pedagógico e não histórico, reformista das práticas e não só das mentalidades. E é assim que A. Sérgio, ao contrário de algumas simplificações de uma certa vulgata, matiza as oposições, designadamente entre fixação e transporte. E o decisivo está na concepção de Portugal como país moderno, capaz de condenar a inevitabilidade do sebastianismo. A decadência nada tem a ver com um factor externo ou com um conspiração anti-nacional, sendo sim o resultado de uma série de opções comummente adoptadas. O fechamento não é uma opção atribuível a um agente ou pequeno conjunto de agentes. É a Portugal, como um todo, que Sérgio atribui a decadência – isto é, à renúncia voluntária à modernidade a que deveria pertencer. Portugal é corrupto por se ter corrompido, e não por ter sido corrompido. Daí a necessidade de uma auto-responsabilização colectiva. Nesta perspectiva, o verdadeiro veículo da mudança social não é a alteração das leis, mas a sua remodelação económica. E assim, fiel a Antero, A.S. considera a economia um instrumento com intuito moral. Temos de saber lidar com “as duas políticas nacionais” e com os dois países que coexistem em Portugal – um conservador e isolacionista e outro moderno e aberto ao exterior. Uma vez que estamos perante faces de uma mesma identidade, é indispensável compreender os dois aspectos e matizá-los, pela acção pedagógica, para que a perspectiva aberta e cosmopolita possa prevalecer de modo estável…
A QUESTÃO EDUCATIVA
Como diz Manuel Ferreira Patrício: “ainda hoje não é possível entender, compreeender e discutir a questão educativa nacional sem conhecer o pensamento pedagógico de António Sérgio”. Daí que a leitura de “Ensaios sobre a Educação” seja um exercício fundamental para a melhor compreensão da obra de António Sérgio e do seu alcance. “O Problema da Cultura e o isolamento dos povos peninsulares” (1914), “Educação Cívica” (1915), “Considerações Histórico-Pedagógicas” (1916), “Cartas sobre as Educação Profissional” (1916), “A Função Social dos Estudantes” (1917), “O Ensino como Factor de Ressurgimento Nacional” (1918) e “Sobre Educação Primária e Infantil” (1939) são textos de leitura obrigatória. Afinal, temos de voltar a ouvir António Sérgio a pôr-nos de sobreaviso: “Nós mantenhamos o santo horror ao palavriado nacional, lembrando-nos do estrangeiro que muito seriamente afirmou que a causa da decadência dos povos peninsulares – era a retórica”…
Guilherme d’Oliveira Martins