AGUSTINA
Por João Bénard da Costa
1 – “A justiça é uma coisa furtiva como um ladrão na noite.” Agustina Bessa-Luís ganhou o Prémio Camões. Foi em Maio de 2004.
2 – Foi em Maio de 1957 que eu comprei o meu primeiro livro de Agustina. Assim dito, dou-me agora conta, parece o princípio da história do Mestre André (“Foi na loja do Mestre André que eu comprei um pifarinho”). Chama-se “A Muralha”.
Não andava propriamente a farejar novos talentos na literatura portuguesa. Sobravam-me os que já conhecia e, na terna guerra onde me começava a perder, acreditava que eles só iam chegar com a minha geração, mais ano menos ano. Mas um desses futuríveis mestres citou-me Agustina como a excepção à minha recém-estabelecida regra. Falou-me de “A Sibila” (1954) que eu só li tempos depois. Por isso, quando dei de caras com “A Muralha” na velha Buchholz da esquina da Rua das Pretas, ou quando “A Muralha” deu de caras comigo (nessa, como noutras coisas, não devemos ser dogmáticos), hesitei entre comprá-lo ou não o comprar. Para tirar teimas, recorri a outra superstição que me tinham ensinado: ler o último parágrafo. Afinal, fixei-me no penúltimo, onde está escrito: “Fome de pão, fome de raça humana, duma povoação nova e de mestres jovens que venham, dos mundos consumados, contemplar-nos apenas, sem programas, sem chama de progresso, sem doutrina e urgência de vencer – apenas com amor.” Dez linhas abaixo, estava inscrita a data do termo do livro: Porto, 7 de Fevereiro de 1957. É o dia dos meus anos, era o dia dos meus 21 anos. Não hesitei mais. Comprei o livro. Começou então a história de uma paixão. Um mês depois, reencontrei o Alberto Vaz da Silva e numa noite sem lua em que Arturo Benedetti Michelangeli tocou em Lisboa, descobri que essa paixão era compartilhada. Ele preferira “Os Incuráveis” (1955) à “Muralha”. Sei que li os dois de seguida, ainda antes de 26 de Julho de 1958. “Que depravação a dos corações de boa memória!…”, diz-se – disse Zita – em “A Muralha”. E é muito poucas páginas antes dessa que Zita descobre, depois de beber um pouco de chá frio com o filho, como Gerson gostava, que a chávena em que o servira tinha na borda “uma marca em elipse de pintura”. Era uma chávena suja que servira a qualquer mulher. Aquele incidente, aquele desleixo, apoquentou-a tanto que o mandou embora.
A criada “veio trazer-lhe os leves chinelos de veludo e apagou um a um os candelabros. Zita sentiu a singular aventura daquela sala vazia e uma dor rompeu-lhe do cérebro, exactamente como há pouco aquela preocupação de desmazelo que a obrigara a corar diante de Gerson. Levantou-se, andou alguns passos rapidamente, como procurando distrair essa dor ameaçadora doutras maiores. Mas nem o sono, nem a alegre vigília dessa noite, passada outra vez em recordação, nem a soma, pesada e repesada, dos seus triunfos e das vantagens que usufruía, nada pôde dar-lhe consolação. Havia sempre o minuto pungente em que, na sala deserta, ela conhecera, nada mais que por um instante agudíssimo e terrível, o significado da sua infrutífera solidão.” Quando o Alberto me falou de “Os Incuráveis”, demorou-se também num minuto pungente, num instante agudíssimo e terrível. Era aquela despedida no tombadilho dum barco, quando Petronila, “implacável mãe”, estava grávida e regressou sozinha para o continente. O véu dela era cinzento, o marido ergueu-o “com a mão que tremia” e beijou-a “de levezinho como se beija um morto, como quem diz adeus até ao fim do mundo”. Em “Os Incuráveis”, esse episódio é narrado em discurso directo por Mariano, depois da morte da Petronila, numa poltrona de couro. O que citei na terceira pessoa, o que me foi citado na terceira pessoa, era a longa fala, ou solilóquio, do filho para a velha criada. E essas duas páginas, que começavam: “Lea, corta-me uma madeixa dos seus cabelos, e tira-lhe do dedo a aliança… Há uma bolsa de cetim branco que tem dentro um ramo de laranjeira.” E acabava com: “Mas em nada disso está final o amor, que é a graça de estar presente e simultaneamente extinto na afirmação de todas as coisas e de todos os outros.” Essas duas páginas, digo-vos eu, são as mais belas que já li em língua portuguesa. Depois, em todos os livros de Agustina (e à excepção de “Mundo Fechado” e “Os Super-Homens”), eu li-os todos, há sempre, oculto ou escancarado, esse instante pungente, de onde irradia toda a ficção, para onde converge toda a ficção. Há um conto publicado há muitos anos na “Colóquio-Letras” – Fernando de Azevedo fez para ele uma magnífica colagem – que o escolhe por protagonista. Ao entrar na casa de jantar, o dono de uma casa feliz surpreende uma criadita muito nova a trincar uma pêra e repara na marca dos belos dentes dela no fruto sumarento. Depois, uma porção de desgraças sucederam precipitadamente. E só no fim, como Tamar ou como Job, o senhor se volta a lembrar dos dentes e do fruto, o minuto que decidiu de tudo, o minuto que decidiu tudo. Não se confessa, como o Rafael dos “Incuráveis”, não se afoga como o Domingos dos “Ternos Guerreiros” (1960), não diz: “Pai, eu tenho um pecado (…) Meu pai, eu tenho um grande pecado (…) Foi um pecado tamanho!” Nem era preciso que o dissesse. Na sombra de um aparador, acontece aquilo que não se deve nomear, nem que seja para o corrigir. “Há coisas que fazem tanta pena”, disse Agustina noutro livro qualquer (eu não posso citar os livros todos). Farei um grande pecado, se disser “há coisas que fazem tanta saudade”? Em 1960, éramos, como os protagonistas de “Ternos Guerreiros” (livro que não tenho à mão, porque o emprestei e nunca mais mo devolveram), novos demais na terra, corações melodiosos e sem culpa, como anjos precipitados e dos quais Deus – diz-se(Agustina disse) – teria uma saudade infinda. “We Can’t Go Home Again”. E agora já estou a falar de Nicholas Ray, também paixão desses anos, também sabedor dos instantes agudíssimos e terríveis. Por alguma razão, quem nos conhece desses anos, ou nesses anos, nos chamava, ao Alberto e a mim, “os maluquinhos de Ray e de Agustina”. E se, como o Richard Burton de “Bitter Victory”, “I always contradict myself”, nessas duas paixões nunca me contradisse.
3 – Mas mal sabia eu – mal sabíamos nós – quanto esse agustinianismo nos ia pôr nas bocas do mundo. Enquanto foi coisa só nossa – ou de nós parecidos com nós – não teve grande consequência. Quando (1963) eu me achei chefe de redacção de “O Tempo e o Modo” e o Alberto Vaz da Silva responsável pela secção de Artes e Letras, bateram-nos a valer. Agustina, suspeitosissimamente olhada pela esquerda de então (mesmo a mais liberal) chamada e exaltada a quase cada número de uma revista progressista? Como era possível? Logo no número 1 uma crítica ditirâmbica a “O Manto” (1965), da autoria de Manuel Poppe, logo no número 3 um capítulo do então ainda inédito “O Sermão do Fogo” (1963).
Foi nesse ano que, em casa de Sophia ou em casa de José Palla e Carmo, a conhecemos. Mas “os caminhos da amizade seriam melancólicos, se não fosse o mistério da sua própria virtude”. Ao longo de 40 anos, desde esse 1963 do “Sermão do Fogo”, dos almoços na Caravela com a Sophia, e da história do lobo que inventou a amizade, “tempos em que Ferrabrás era mundo e os porcos passeavam pelas cidades com uma faca espetada no lombo, meios cozidos, meios assados e uma maçã vermelha na boca”, até hoje, terei estado com Agustina umas 40 vezes, mas se sempre a li perto, sempre a vi longe.
Ainda em 1963, escreveu-me ela uma carta (ou escreveu-a ao Alberto Vaz da Silva, questão que nós dois temos em aberto) sobre contas a ajustar. “Eu projecto agora uma pequena caminhada a Itália, preciso de meias solas nos meus sapatinhos de ferro e não é o vento norte quem me ajuda.” Anos depois, com muita surpresa (tudo isto foi antes do 25 de Abril), recebi outra carta dela a convidar-me para colaborar numa revista que ela tinha sido convidada a dirigir. De evidência disse-lhe logo que sim, mas o projecto não foi avante e nunca pude, pois, colaborar com ela, a não ser quando, muito mais tarde, nos cruzámos em filmes de Oliveira. Graças a Oliveira (também) passámos uns dias em Turim, com jantares em que ela contou contos como só ela conta. Como a vida não tem acasos, dois editores diferentes se lembraram de nós dois, de uma vez para os sete pecados mortais, de outra vez para as sagradas escrituras. Noutra ocasião, convidei-a eu para apresentar um filme, à livre escolha dela, na Cinemateca. Escolheu “As You Like It” de Paul Czinner com Elisabeth Bergner e um juvenilíssimo Laurence Olivier, em Osalinda e em Orlando. É um filme inglês de 1936, jamais estreado em Portugal e rarissimamente reposto. Corri Esparta e Tróia em busca dele e achei-o. Mas perguntei aos meus botões onde, diabo, o teria visto ela, que no Porto não fora certamente. Quando Agustina chegou à Cinemateca, fiz-lhe a pergunta. Resposta imediata: “Nunca o vi. E foi por isso que o escolhi. Queria vê-lo.”
4 – Este texto ficaria incerto – tão incerto como aquela história que Agustina contou um dia na televisão sobre a felicidade e a infelicidade e os sinos de um campanário -, se a não terminasse com um último “flash-back”. São, de novo, os anos 60 e é o disco em que ela lê a história de “A Mãe de Um Rio”, outra história de instantes terríveis. Tantas vezes a ouvi que se tornou inaudível. Valha-me o vento norte para mo repor no sapatinho e eu tornar a escutar, na voz levezinha dela: “Antigamente, antigamente sim. A terra tinha a forma quadrada e um rio de fogo corria na superfície.” Agustina como dantes. Agustina como agora.
5 – “A justiça é uma coisa furtiva como um ladrão na noite.” Agustina Bessa-Luís ganhou o Prémio Camões. Foi em Maio de 2004.
(28 de Maio 2004 in Público)