A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” de Martin Page (Casa das Letras, 2008) é um livro surpreendente. Antes do mais por ser escrito por um não português, que demonstra um grande apego às nossas coisas e à nossa História, e depois por ser escrito por um não especialista, jornalista de profissão, que, no entanto, demonstra erudição bastante a que se soma uma curiosa intuição na apresentação da tese segundo a qual um pequeno povo pôde, de modo inesperado, mudar o mundo.

A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de Julho de 2008



“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” de Martin Page (Casa das Letras, 2008) é um livro surpreendente. Antes do mais por ser escrito por um não português, que demonstra um grande apego às nossas coisas e à nossa História, e depois por ser escrito por um não especialista, jornalista de profissão, que, no entanto, demonstra erudição bastante a que se soma uma curiosa intuição na apresentação da tese segundo a qual um pequeno povo pôde, de modo inesperado, mudar o mundo.



Rei D. Afonso V.


UMA CONVERGÊNCIA DE FACTORES
Alguém disse que falta nesta obra a dimensão sombria e negativa de uma realidade que às vezes parece (mas não é) demasiado idílica. Contudo, o livro pretende tornar claro que às vezes é possível a um povo improvável transformar radicalmente a realidade que lhe é dada. E se somos suspeitos sobre este tema, a verdade é que, ao lermos o livro, ficamos cientes das razões que levaram o autor britânico a ganhar gosto pelo que somos. Tudo começou, para Martin Page, num encontro casual nos tempos da República do Catanga, no início dos anos sessenta, com uns portugueses a ajudarem um correspondente de guerra a sair de um tremendo imbróglio. E o que revelam? Uma enorme “disponibilidade para ajudar um estrangeiro em apuros”, mas também um “misto de fanfarronice, honra, ingenuidade e sangue-frio”. Daqui vem a pergunta: que povo é este? Martin Page (1938-2005) foi um jornalista britânico do “The Guardian”, do “Sunday Times” e da revista “The Tablet” e um escritor premiado como romancista e como correspondente de guerra na Argélia e no Vietname. Atingido pela cegueira, instalou-se em Portugal, com a sua mulher Catherine e os seus dois filhos, na Azóia, tendo começado a reunir elementos sobre o país que o acolhera e que tanto admirava. Assim, estudou intensamente os acontecimentos históricos, com base nas fontes publicadas ou nos relatos tradicionais, e viajou pelo país e pelo norte de África, para tentar compreender melhor o enigma que Portugal parecia encerrar – como pôde um pequeno e antigo povo influenciar tão profundamente o mundo?
UMA NARRATIVA DESEMPOEIRADA
O livro é uma introdução a Portugal, feita com vivacidade por alguém que apenas deseja, sem complexos, dizer que um pequeno país à beira-mar plantado teve razões fortes para persistir no tempo, não tendo chegado por acaso onde chegou. E, em vez de apresentar ou uma visão passadista ou uma leitura ressentida, diz-nos que continua a ser importante dar atenção a Portugal. Não há, por isso, qualquer pretensiosismo teórico, mas sim a apresentação de uma sucessão de factos singulares, cujo conhecimento é útil, não apenas para os não portugueses que gostam do nosso sol, do nosso clima, da nossa terra, das nossas iguarias e do nosso vinho, mas também para nós mesmos, fora de ilusões retrospectivas e de tentações fatalistas. Assim, começamos a ler estas páginas e não mais paramos, mesmo que percebamos que muitas vezes a explicação está apenas esboçada e é demasiado simplificadora. Pequenos erros não prejudicam a ideia essencial. Para mim, há ainda um dado afectivo que não posso esquecer, é que foi o meu saudoso amigo Pedro d’Orey da Cunha (a quem a obra é dedicada) um dos incentivadores de Martin Page para que escrevesse este livrinho, e a verdade é que tenho que lhe agradecer (entre tantas outras coisas) mais essa sua diligência. De facto, para quem não conheça, ou conheça mal, Portugal é importante ler “A Primeira Aldeia Global”.
ALGUNS EXEMPLOS
Page conta que, dois dias antes de morrer, Pedro da Cunha discutiu com ele, em pormenor, o manuscrito deste livro. Agradavelmente surpreendido com o que lera, Pedro salientou, com razão, que o relato sobre os primeiros anos de Portugal era a parte mais interessante da obra. São importantes as fontes existentes fora de Portugal, “a mais notável das quais é constituída pelos registos do Concílio de Troyes”, presidido por São Bernardo de Clairvaux, que contou com a presença do Papa e dos reis da França e da Alemanha. “Ali foi aprovada a instauração da Ordem do Templo, com a tarefa específica de criar uma nova nação europeia, que viria a chamar-se Portugal. Não se concretizou como uma entidade solitária, mas antes como parte orgânica de uma Europa em surgimento, agora finalmente reunida”. Por isso, Pedro da Cunha concordava com Page que o Mosteiro de Alcobaça é bem mais importante do que o da Batalha, para a compreensão das nossas raízes, graças ao papel desempenhado pelos monges de Cister da Borgonha, “onde foi criada e disseminada uma nova civilização humanista”. Ao longo de cerca de trezentas páginas, Martin Page procura dizer que os portugueses não foram tanto conquistadores, mas um povo medianeiro relativamente a outros povos e influências, através de quem o conhecimento e as tecnologias se transmitiram à Europa e ao mundo… Aqui era Társis o destino de Jonas, aqui o cartaginês Aníbal encontrou homens, armas e ouro que tornaram possível a marcha sobre Roma; aqui Júlio César obteve fortuna e influência; aqui o cristianismo medieval implantou-se intensa e profusamente; aqui, árabes e berberes integraram os povos ibéricos na civilização mais adiantada do mundo; aqui, Silves foi um centro internacional de música e literatura – a Bagdad do Ocidente. Depois da reconquista, o novo Portugal criou as condições para se tornar a nação mais rica do mundo; Pedro Julião, o futuro papa João XXI, foi um dos intelectuais mais influentes do seu tempo; D. Dinis consolidou o Estado moderno e impulsionou políticas sociais e educativas pioneiras; D. João I e os seus filhos propuseram-se responder ao desafio ultramarino, que S. Bernardo tinha antecipado. D. João II, o artífice da grande aventura, rodeou-se de cientistas e sábios, judeus e cristãos, e propôs-se revolucionar a ciência e o comércio mundial; Veneza perdeu influência para Lisboa; Pero da Covilhã foi enviado, com Afonso de Paiva, até ao Índico para preparar, em segredo, a navegação que revolucionaria o mundo e que tornaria o planeta um só; Vasco da Gama foi, deste módo, um embaixador e não um descobridor, que chefiou uma missão muito preparada; mas a chegada à Índia reservaria algumas surpresas desagradáveis, por incompreensão de uma cultura insuficientemente conhecida pelos europeus…
MUDANÇAS RADICAIS
Sob o olhar de Page, percebemos que o Império português do Oriente caracterizou-se pelo desenvolvimento das contendas com os árabes pelo domínio do Índico. Mas não é só a Índia que está em causa. De Ormuz a Malaca, passando por Goa, há uma nova economia global que passa a existir, alterando radicalmente o comércio e a ciência. Goa foi a primeira cidade europeia da Ásia. Malaca é a passagem para a China e o Japão. Afonso de Albuquerque é um estratega de tipo novo, preocupado com a implantação dos colonos, com a criação de actividades económicas relevantes, com a miscigenação. Francisco Xavier e João de Brito são missionários que procuram corresponder às diferenças culturais com que deparam. Fernão Mendes Pinto é o genial aventureiro e escritor que conta na “Peregrinação” tudo o que lhe aconteceu ou poderia ter acontecido. D. João de Castro, Pedro Nunes e Garcia de Orta são exemplos de cientistas notáveis. Contudo a Idade de Ouro de Lisboa foi acompanhada por sinais vários de decadência além fronteiras. A expulsão dos judeus, apesar dos subterfúgios usados por D. Manuel para adiar a decisão imposta pelo contrato de casamento com D. Isabel filha dos Reis Católicos, o estabelecimento da Inquisição, os “fumos da Índia”, o lento anunciar da tragédia de Alcácer-Quibir, a derrota da Invencível Armada – tudo isso determinou o enfraquecimento português, em benefício das potências do Mar do Norte… Mas Martin Page não se fica nessas glórias pretéritas. Segue os altos e baixos até à II Guerra, na perspectiva anglófila, como é natural, e à “liberdade ao amanhecer” – acreditando seriamente nas nossas boas possibilidades…
Guilherme d’Oliveira Martins

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