UM NOVO CONCEITO DE PATRIMÓNIO
Por Guilherme d’Oliveira Martins,
À memória de Helena Vaz da Silva,
Pioneira do novo conceito.
A nova Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Património Cultural, assinada em Faro em Outubro de 2005, acaba de ser aprovada para ratificação pela Assembleia da República. Trata-se de um instrumento inovador da maior importância, onde pela primeira vez se reconhece que o património cultural é uma realidade dinâmica, envolvendo monumentos, tradições e criação contemporânea. Segundo este documento, a diversidade cultural e o pluralismo têm de ser preservados, contra a homogeneização e a harmonização. E se falamos de um “património comum europeu”, a verdade também é que estamos perante a construção inédita e original baseada na extensão do Estado de direito, na diversidade das culturas, na soberania originária dos Estados-nações, na legitimidade dos Estados e dos povos, na criação de um espaço de segurança e de paz e numa maior partilha de responsabilidades nos domínios económico e do desenvolvimento durável.
Trinta anos depois de ter organizado o Ano Europeu do Património Arquitectónico, o Conselho da Europa continua a desempenhar um papel pioneiro na reflexão sobre o significado do património nas nossas sociedades. E a nova Convenção de Faro insere-se na linha das Convenções em vigor – de Granada de 1985, sobre o património arquitectónico, de La Valetta de 1992, sobre o património arqueológico e de Florença de 2000, sobre a paisagem. Trata-se do culminar de uma reflexão levada a cabo pelo Conselho da Europa, desde os anos 70, em matéria de “conservação integrada” dos bens culturais. Sem retornar a mecanismos de protecção já cobertos pelas Convenções precedentes, o novo texto insiste nas funções e no papel do património: trata-se de passar de “como preservar o património, segundo que procedimento?”, à questão do “porquê e para quem dar-lhe valor?”. Esta perspectiva concretizou-se no entendimento segundo o qual o conhecimento e a prática do património cultural têm a ver com o direito dos cidadãos participarem na vida cultural, de acordo com os direitos e liberdades fundamentais comummente aceites. A Convenção considera, assim, o património cultural como um valor e um recurso que tanto serve o desenvolvimento humano em geral, como serve um modelo de desenvolvimento económico e social assente no uso durável dos recursos, com respeito pela dignidade da pessoa humana.
Estamos perante de um instrumento de referência, apto a influenciar outros instrumentos jurídicos de âmbito nacional e internacional. Isto significa que se trata de um instrumento que, sem duplicar a acção da UNESCO (designadamente quanto ao património imaterial), define objectivos gerais e identifica domínios de acção, bem como direcções e pistas em cujo sentido as partes aceitam progredir, deixando a cada uma a escolha e a autonomia para optar pelos meios de realização melhor adaptados à sua tradição política e jurídica. É uma Convenção-Quadro, que não cria “direitos executórios” directamente aplicáveis nos países, mas lança um processo de cooperação entre os Estados, convidando-os à actualização e ao progresso das suas políticas do património em benefício de toda a sociedade.
Por fim, a originalidade do conceito de “património comum da Europa” tem de ser vista como um elemento dinamizador de uma cidadania aberta. O “valor” surge, assim, no “horizonte da experiência histórica”, fora de qualquer concepção abstracta. Património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e no ponto de encontro entre memória, herança e criação. Assim se entende ainda a adopção de um mecanismo de acompanhamento e de balanço da cooperação entre os Estados signatários. Uma base de dados comum e um centro comum de recursos servirão as administrações num sentido de eficiência e de apoio às boas práticas. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, o texto visa prevenir ainda os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação como “fonte de conflitos” (todos nos lembramos dos exemplos da Ponte de Mostar e de Dubrovnik). A cultura de paz e o respeito das diferenças obriga, no fundo, a compreender de maneira nova o património cultural como factor de aproximação, de compreensão e de diálogo.
(G.O.M. presidiu ao grupo que no Conselho da Europa preparou a nova Convenção)