UM DIA DE AFIRMAÇÃO
Quando, no dia 25 de novembro de 2019, a Conferência Geral da UNESCO decidiu adotar o 5 de maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa, esse reconhecimento significou uma extraordinária responsabilidade partilhada por todos os que no mundo usam a mesma língua como meio de comunicar, de pensar, de criar, de exprimir sentimentos, de cultivar as artes, de partilhar conhecimentos, de refletir ou de inovar. A língua é essencial para a afirmação das identidades, mas também para enriquecer pelo diálogo as culturas e civilizações. É verdade que, segundo alguns, os povos primitivos criaram diferentes línguas para poderem preservar os seus segredos, mas também é verdade que as diferentes línguas foram sofrendo um longo processo de intercâmbio e de enriquecimento mútuo, recebendo vocábulos, ideias, construções de outros que fortaleceram a comunicação entre os povos e a partilha de valores comuns.
Como afirma Fernando Venâncio em Assim Nasceu uma Língua – Sobre as Origens do Português o nosso idioma projetou-se em todos os continentes. E segundo Ivo de Castro: “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”. Quando falamos da língua portuguesa, consideramos uma longa história, a partir do galaico-português, referimos uma língua antiga, que cedo alcançou uma assinalável maturidade, certamente em virtude do Rei D. Dinis tê-la tornado cedo língua dos tabeliães em lugar do latim – o que favoreceu a afirmação do idioma como modo de comunicar do povo e dos letrados. Foi na Galiza que tudo começou, desenvolvendo-se a língua a partir das influências que os portugueses imprimiram, multiplicaram e também sofreram. Mas o nosso idioma e o espanhol tiveram géneses diferentes e separadas, como se vê no banimento das consoantes, no desenvolvimento do ditongo ão e na redução das sibilantes. De facto, o português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro, sem prejuízo de um encontro do português e do espanhol por volta de 1400, no momento do “ofuscante esplendor” da cultura vizinha. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista…
LÍNGUA DE VÁRIAS CULTURAS
Eis por que temos falado de uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas, o que dá razão a Ivo de Castro quanto à complexa evolução de um idioma partilhado num mundo global. Falamos de várias culturas, pela natureza própria da diversidade política, como língua de unidade nacional, como língua segunda, ou como língua integradora num complexo mosaico étnico e geográfico – tudo isto encontramos, ora em África, ora no Brasil. E quando referimos várias línguas, reportamo-nos ao desenvolvimento dos crioulos, de raiz portuguesa, com uma vida própria, designadamente pela diversidade arquipelágica. De facto, sem idealizações ou simplificações, e muito menos paternalismos, a partir de exemplos concretos, trata-se, no fundo, de uma língua que deve ser vista como uma realidade em movimento. Como disse Rui Knopli a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, numa espécie de “pátria coincidente”. E para o compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea – Mia Couto, Germano Almeida, Pepetela, Rubem Fonseca, Ondjaki, Jaimilia Pereira de Almeida, António Lobo Antunes, Lídia Jorge…
«PÁTRIA COINCIDENTE»
Numa fórmula feliz, António Sampaio da Nóvoa, representante permanente de Portugal junto da UNESCO, fala-nos da “criação de um movimento que vá muito para além do dia 5 de maio, que simbolicamente é apenas a data, o lugar onde inscrevemos a nossa vontade de uma promoção internacional da Língua Portuguesa” e propõe uma estratégia a seguir, sintetizada em EC ao cubo, que integra Ensino, Cultura, Conhecimento e Comunicação. E a esta proposta, temos de ligar o especial empenhamento do Embaixador português, em dois importantes projetos no seio da UNESCO, as reflexões sobre o futuro do ensino e a exigência de uma ciência aberta e da partilha de dados e de conhecimento. São linhas de ação cruciais que certamente empenharão a Conferência Geral da organização de 2021 e constituirão a demonstração de que a língua portuguesa pode ser um dos catalisadores nas áreas de ação da UNESCO. E a afirmação de Sampaio da Nóvoa de que a UNESCO deve centrar-se na situação de África é essencial e tem de ser ouvida na organização e na cena internacional. Importa assegurar um diálogo efetivo entre as áreas universitárias e científicas, capaz de mobilizar e enriquecer a cooperação entre os Países de Língua Portuguesa, mas também de favorecer um diálogo global, designadamente com as outras áreas linguísticas, compreendendo que o multilinguismo é cada vez mais importante e que é nessa perspetiva que teremos de trabalhar no conhecimento e na investigação científica. A língua inglesa é indubitavelmente fundamental nos vocabulários científicos, mas temos de assegurar o diálogo interlinguístico, designadamente no âmbito das ciências sociais, nas quais a diversidade da comunicação tem de ser compreendida, sob pena de desvirtuarmos o conhecimento. Como insistia Vasco Graça Moura, nenhum de nós quer uma língua única, totalitária. Tem de se abrir espaço para a diversidade linguística, estabelecendo pontes entre os vários idiomas e as várias culturas. Veja-se a importância crescente das línguas asiáticas (mandarim ou hindi) e atente-se ao grande interesse das Universidades da R. P. da China na aprendizagem da língua portuguesa, exatamente num contexto de multilinguismo. E não podemos esquecer que as chamadas Humanidades irão ganhar uma configuração cada vez mais fortemente relacionada com todas as disciplinas científicas. Como investigar as literaturas e as artes sem considerar a diversidade de culturas e idiomas? Vergílio Ferreira dizia, por isso, que não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa. Infelizmente, há quem julgue que a avaliação académica deve ser uniformizada e redutora, o que é contrário da compreensão da diversidade. E não se pense que a tendência futura é para a existência de uma única língua franca. De facto, a lógica unificadora do Esperanto desvaneceu-se com o tempo. E nós, falantes da língua portuguesa, sabemos bem do que falamos, porque tivemos no Índico e na Ásia uma língua franca, de mercadores e missionários, o “papiar cristão”… Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realidade fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí está a sua riqueza e as suas virtualidades.
Guilherme d’Oliveira Martins
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