A VIDA DOS LIVROS
De 7 a 13 de Julho de 2008
“Antero de Quental – Fotobiografia” de Ana Maria Almeida Martins (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008) é uma obra elaborada com um grande cuidado no conteúdo, no grafismo e na escolha iconográfica, permitindo conhecer melhor não só a vida e a personalidade do grande poeta dos “Sonetos” mas também a geração de que foi mentor. Estamos perante uma feliz revisão do livro publicado há vinte anos (1986), e agora ampliado, sendo de realçar a descoberta de novas fotografias de Antero, nas quais encontramos o magnetismo e o carisma do extraordinário poeta micaelense. Deve dizer-se, aliás, que, na nova obra, aparece a aura do biografado com muito maior intensidade e as novas descobertas sobre a sua biografia são devidamente enquadradas e apresentadas, a benefício de um melhor conhecimento da época e das suas personagens marcantes.
DE S. MIGUEL A COIMBRA
Descendente de uma antiga família açoriana ilustre, filho de um dos bravos do Mindelo, que desembarcou, em 1832, na cidade do Porto, ao lado do regente D. Pedro, num momento crucial da guerra civil, Antero de Quental (1842-1891) singularizou-se desde muito cedo pelo talento e pela genialidade, como poeta e pensador, mas também como agitador de ideias e como defensor dos ideais da modernidade. À distância do tempo, sentimos a força extraordinária da sua personalidade, impondo-se naturalmente aos colegas da Universidade de Coimbra, num caso único de sedução e de capacidade mobilizadora e reflexiva, ao nível dos grandes heróis românticos. Antero dirá mais tarde a Wilhelm Storck: “Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição”. Estamos, de facto, perante alguém que encarna a um tempo a linhagem dos monges medievais e dos companheiros de Garibaldi, em luta pela verdade e pela justiça, desde a poesia à acção cívica. Eça é claro: “Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência, o Príncipe da Mocidade”. E essa capacidade fantástica, que a vida confirmará, virá, aliás, a impressionar Miguel Unamuno, que coloca Antero na plêiade dos criadores do existencialismo, na encruzilhada entre a espiritualidade e a aguda consciência crítica. E no que toca à literatura portuguesa, não há dúvidas que o poeta de S. Miguel é uma das referências maiores, não apenas indiscutivelmente na poesia, mas também na prosa, como afirmou Manuel Bandeira: “Costuma apontar-se o Eça de Queirós como o modernizador da prosa portuguesa. Basta, porém, a carta Bom-senso e Bom-gosto para se provar que se houve reforma da prosa portuguesa ela já estava evidente no famoso escrito de Antero”.
SENTIMENTOS FORTES
O percurso de vida que perseguimos é fascinante. Carolina Michaelis falou de um homem “calmo e meigo, um verdadeiro sábio santo, de uma singeleza e sinceridade encantadora”. “Era um rapaz sedutor, como nunca encontrei outro”, disse Oliveira Martins. E, para Luís de Magalhães: “os olhos azuis pareciam perder-se num sonho”. E é tudo isso que aqui se sente, sobretudo quando ouvimos o poeta: “ O que é belo não o é só porque alegra o olhar e fala aos sentidos a linguagem da perfeição. É-o, sobretudo, porque o coração lhe sente a verdade eterna que o anima” (1865). Estamos, defacto, perante alguém que acredita na força das ideias. Ora deparamos com o elogio da razão, ora encontramos a força da ironia, como na “Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal”, onde ataca a hipocrisia dos jornais liberais no ataque à posição da Igreja – e assim reza “respeitosamente um De Profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas a não render-se”… Eis-nos perante o homem moderno, ciente das contradições e das perplexidades de uma sociedade mutante (“E, se lhe é dado que suplique e adore, / Também é justo que blasfeme e chore!” – diz Antero na abertura de “Odes Modernas”). Camilo Castelo Branco, criteriosíssimo, não teve dúvidas: “As Odes Modernas de A.Q. são a aurora da poesia moderna”. Mas as reacções não se fazem esperar. A propósito de uma injusta ferroada de António Feliciano de Castilho a propósito da nova poesia, abre-se a polémica rija do Bom-senso e do Bom-gosto. E Antero não poupa nas palavras: “Combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime da sua dignidade, do atrevimento da sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da imprudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças”. Antero explicará: “Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda. Castilho, que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo”… Tempo depois, em Paris, apresentando-se incógnito a Michelet, como se fosse um amigo, receberá do historiador francês o maior dos elogios e o mais belo incentivo: “Votre lettre est, certes, la plus belle que j’ai reçue depuis longtemps. Quoi ! vous avez douze hommes! Mais c’est beaucoup. Il faut moins pour changer le monde”.
MUDAR O MUNDO
Depois de Coimbra, visita França, Espanha e os Estados Unidos, e vem para Lisboa, onde não baixa os braços no combate. Os acontecimentos históricos europeus (a guerra franco-prussiana, a Comuna de Paris) animam a luta e a imaginação. É o tempo do Cenáculo no Bairro Alto, em S. Pedro de Alcântara, na Rua dos Prazeres, a S. Bento. Organizam-se as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense. Em 27 de Maio de 1871, Antero profere a conferência intitulada “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Já depois de Eça de Queirós ter falado, a inesperada proibição da conferência de Salomão Saragga originou um coro de protestos. Alexandre Herculano associou-se à indignação. E Antero escreveu a célebre carta ao Marquês de Ávila: “Um dia decidiu-se alguém a pensar livremente. O Sr. Marquês de Ávila pôs logo o seu chapéu ensebado em cima da liberdade de pensamento!”. E deste modo o sucesso das conferências ficaria assegurado para todo o sempre, em virtude do acto gratuito de as proibir, chamando a atenção para elas até dos mais desatentos. Folheando a Fotobiografia, vamos deparando com o país que um grupo de jovens procurava desassossegar para transformar. Tendo a seu lado Jaime Batalha Reis e Oliveira Martins, que se torna o seu maior amigo, mas é obrigado a partir para Espanha, para ganhar a vida, Antero procura lançar um movimento democrático, republicano, socialista que possa dar ânimo a uma país ferido pela indiferença. O poeta discute, reflecte, dialoga, mas convive com uma estranha doença (que o obriga a consultar o Dr. Charcot) que o afecta profundamente. Só em 1882, quando se fixa em Vila do Conde, estando próximo dos seus amigos, pode viver um período de paz e de serenidade: “Aqui as praias são amplas e belas, e por elas passeio ou me estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz”.
O GRUPO DOS CINCO
No Palácio de Cristal, foi tirada a fotografia mais célebre de cinco amigos da geração: Antero, Oliveira Martins, Ramalho, Eça e Junqueiro. E a imagem está ligada a um mítico almoço e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de José Maria, autografado com uma pena de cozinha, entre a pêra e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde. O poema “Solemnia Verba” fala-nos de um viver que não foi em vão. A frase cai como uma luva na obra que analisámos. E fica-nos o prazer grande de reencontrar Antero!
Guilherme d’Oliveira Martins
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