1. Para nós, vivendo na normalidade, tudo nos parece claro e evidente. Só quando perdemos algo ou estamos na ameaça de perdê-lo é que damos pela sua importância, que pode ser decisiva, essencial.
É o que acontece com a saúde. Haverá bem maior, mais importante do que a saúde? Reparo que em todas as línguas que conheço, quando as pessoas se encontram ou, sobretudo, se reencontram, se cumprimentam perguntando pela saúde: “Como estás?, Como vais?, Como tens passado?” E, na despedida: “Passa bem, cuida de ti e dos teus. Passai bem”. E “saudamo-nos” (saudar: vem do latim: salutem dare, dar saúde, desejar saúde) e temos “saudades”, com o mesmo étimo, e escrevemos a alguém, terminando: “Saudades”.
“Vale!”: esta era a saudação romana, com o sentido de “passa bem”, e, por outra via, reencontramos de novo a saúde. É de “vale” que vem “valor e valores”. E qual é o valor da saúde? Valor essencial, porque com saúde vamos para a vida e com esforço faremos algo, conquistaremos a nossa vida e a nossa realização com outros. Porque a saúde não é só física, implica também uma dimensão psicológica (se não me der bem comigo, sinto-me mal, sem saúde), a relação com o outro, dar-se bem com o outro (se eu só de ver alguém com quem não posso fico doente, é prova de que não estou com boa saúde), uma boa relação com a natureza, uma relação boa com a transcendência…
E quando caímos doentes? Procuramos a ajuda de um clínico (palavra que vem do grego: klinein, com o sentido de inclinar-se para e sobre alguém que precisa de ajuda) ou junto de um médico (quem diria que moderação, meditação e medicina têm a mesma etimologia: mederi — a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente —, que significa cuidar de, tratar, medicar, curar?) e vamos para uma clínica ou para um hospital, palavra que vem do latim: hospes, hospitis, com o significado de hóspede.
Agora que chegou esta calamidade global que estamos a viver, apercebemo-nos, de forma intensa e tenebrosa, do valor da saúde e, por outro lado, da nossa interdependência, positiva e negativa: somos iguais, podemos infectar-nos uns aos outros, temos de cuidar uns dos outros, apoiar-nos mutuamente de todos os modos, porque apenas colaborando todos, cada um à sua maneira e segundo as suas competências e possibilidades, venceremos esta guerra.
2. Quando era ainda muito jovem, esta estória bem conhecida impressionou-me em extremo. Mais ou menos assim: Havia um sábio modesto que ofereceu a um rei um tabuleiro de xadrez. O rei ficou tão exaltado que lhe pediu que dissesse como podia recompensá-lo. Perante a insistência do rei, o sábio apenas pediu que lhe desse 1 grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro e que fosse duplicando os grãos até concluir as 64 casas: 1 pela primeira, 2 pela segunda, 4 pela terceira, 8 pela quarta, 16 pela quinta e assim sucessivamente: 32, 64, 128, 256, 512, 1024… O rei achou o pedido modesto e os servos começaram a trazer sacos de trigo e, lentamente, os matemáticos do reino foram concluindo que o número era tão colossal que não havia trigo suficiente, mesmo socorrendo-se dos celeiros de reserva, para satisfazer o pedido.
Serve esta lenda para trazer um pouco de luz ao modo como o covid-19 estava e está a contaminar as populações do mundo inteiro. E era urgentíssimo tomar medidas drásticas para conter o pior. E foi o que fizeram e estão a fazer os governos, também o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o governo português, em colaboração de uns com os outros. É preciso ceder bens menores a favor do bem maior, a saúde e a vida. Sacrificamo-nos todos, com o sentido do bem comum. Sem alarmismos, mas com racionalidade e urgência.
E, entre nós, mesmo admitindo que houve e há medidas que chegaram e chegam tarde — e é sempre melhor, como diz a sabedoria ancestral, prevenir do que remediar —, as coisas vão funcionando razoavelmente. As pessoas são prudentes, o pessoal sanitário trabalha incansavelmente e por vezes até com falta de meios — faço minhas as palavras do Papa Francisco aos médicos, enfermeiros, voluntários: “admiro-vos, ensinam-me como comprometer-me e agradeço-vos o testemunho; muitos não são crentes, outros são agnósticos ou levam uma vida de fé à sua maneira, mas no testemunho… vês a sua capacidade de ‘jogar’ a vida pelo outro, mesmo que entre eles haja mortos” —, o pessoal sanitário, sim, mas também todos quantos realizam o necessário para que a vida continue: há supermercados, há luz, há água, há farmácias, há transportes, há bombas de gasolina, há correio, há bancos, há teletrabalho, há bombeiros, há jornais, há notícias, há aulas online, há governo, há polícia… Ponho-me a pensar: é em circunstâncias como estas, quando há restrições, que a gente toma consciência do que é preciso e de quanta gente é necessária para que um país funcione, e os países, e o mundo humano todo… Normalmente, damos tudo por evidente.
Naturalmente, os cientistas investigam arduamente para encontrar uma vacina que estanque esta dor, esta tristeza e noite… Mas lá está a incerteza: Quando é que ela aparecerá? E quanto tempo vai durar esta calamidade até que possamos reencontrar-nos todos, vivos, numa exaltação exultante, que ainda não tem nome? E a crise económica e social brutal a caminho?
3. Entretanto…, a vida, com todas as suas restrições e limitações, continua.
E a religião e a Igreja? Não se pode esquecer como Jesus se manifestou sempre preocupado, atento e cuidadoso com a saúde de todos e como curava. Assim, a favor da saúde e do bem comum, a Igreja, como não podia deixar de ser, suspendeu a celebração comunitária pública das Missas. Também no Vaticano, cujas praças estão desertas. E é em streaming que se vai celebrando e comunicando.
Que pode fazer mais? Vai depender também da imaginação criadora. O Papa Francisco já disse que, na falta de padres, os fiéis (a linguagem atraiçoa-nos sempre: cá está, como se os padres não fossem fiéis!…) se confessem “directamente” a Deus. E, numa entrevista ao La Stampa, procurou dar ânimo e esperança e, confiando que desta “guerra” da pandemia sairá uma sociedade melhor, pediu: “Não tenham medo!”. “Estamos todos a sofrer. Só poderemos sair desta situação juntos, como Humanidade inteira. Temos que pensar que será um pouco como depois de uma guerra. Já não estará ‘o outro’, mas, sim, estaremos ‘nós’”. A Penitenciária Apostólica decretou a “absolvição colectiva” para todos os doentes de coronavírus, os seus cuidadores e o pessoal sanitário. E eu pergunto: Se não fosse o carreirismo e o clericalismo em que os católicos foram formados, não poderiam as famílias, agora confinadas em casa, celebrar validamente a Eucaristia? “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei lá, no meio deles”, disse Jesus. E não é a família uma “Igreja doméstica”, como sempre se afirmou, sobretudo no princípio do cristianismo?
É tarefa primeira da Igreja continuar a dar ânimo, esperança e confiança. Fé quer dizer isso: confiança. As paróquias deveriam pensar num atendimento telefónico, para escutar, consolar, dar ânimo… É preciso advertir que a solidão também mata. Agora, que até os funerais têm de ser reduzidos e rápidos, é missão pastoral dos seus agentes mais próximos a promessa e o compromisso de, quando tiverem passado estes tempos de incerteza e de trevas, se dar a possibilidade de um serviço fúnebre comunitário no qual as pessoas possam relembrar os seus mortos e despedir-se deles, desabafando, chorando juntos lágrimas de saudade uns com os outros, já sem a angústia tenebrosa do contágio…
Rezar? Claro. Francisco deu o exemplo, num gesto simbólico de fé e de solidariedade com todos: foi em peregrinação à igreja de São Marcelo em Roma, e é impressionante aquela imagem dele, sozinho, distanciado dos outros, numa rua praticamente deserta, para, diante do Crucifixo milagroso, pedir solidariamente por todos.
Milagres no sentido estrito, o que significa uma intervenção de Deus para suspender as leis da natureza, não há, porque isso implica ateísmo, já que supõe que Deus está fora do mundo e, de vez em quando, e a favor de uns e não de outros, vem dentro. Ora, Deus está sempre infinitamente presente à sua criação e a todos nós. Por isso, só creio nos milagres do amor, o que significa que somos remetidos por Deus, como concriadores, para tudo fazermos, cuidando de nós, dos outros, da natureza e dEle em nós. Mas podemos e devemos rezar a pedir a nós para termos essa força de cuidar. E também temos o direito de rezar, falando com Deus, desabafando, fazendo-lhe perguntas, protestando com Ele (a Bíblia diz que Deus louvou Job porque lhe fez perguntas e protestou com Ele porque estamos arrasados pela dor e, aparentemente, Ele não faz nada), confiando…
4. E no “retiro” forçado, no confinamento da casa? Finalmente temos tempo para o essencial. Andamos habitualmente tão longe de nós, à superfície, perdendo-nos numa “agitação paralisante e numa paralisia agitante”, para utilizar a expressão do célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. Encontramos agora tempo para estar connosco, para um novo reencontro de cada um, de cada uma consigo, indo ao mais fundo de nós e lá deparar com o Mistério, o Sagrado, e com o milagre de ser e de existir. Tempo para pensar nas perguntas essenciais. Não pertence também à sabedoria do viver aprender a conviver saudavelmente com a morte? O que é que verdadeiramente vale? O que é que esperamos? O quê ou quem nos espera?
Confinados e com carências, tomamos consciência de que, afinal, podemos viver com menos. O que é que mais falta nos faz? Não nos definimos pelo ter, mas pelo ser. Ah! E pensávamos ser omnipotentes e chegou um vírus invisível que nos apavora e nos pode matar, e percebemos então que precisamos da humildade como verdade. Ah! E somos iguais, pela negativa e pela positiva, como já ficou dito: podemos contagiar-nos uns aos outros — todos: presidentes, embaixadores, doutores, celebridades, gente anónima, analfabetos, ministros, bispos, ricos, pobres (estes, apesar de tudo, mais, porque têm menos possibilidades, por exemplo, como se resguardam os sem-abrigo?) estamos expostos — e também só todos juntos nos poderemos salvar, nestes tempos plúmbeos e de noite. E há uma só Humanidade, num mundo global: este coronavírus corre pelo mundo todo e percebemos que é imprescindível a solidariedade universal, se quisermos ter futuro. Agora e quando tiver passado este tempo angustiante de temores, incertezas e um imenso sofrimento físico e moral.
E damo-nos conta também de que, afinal, numa sociedade individualista e egoísta, que tanto exalta e celebra o Eu, agora que temos de viver afastados, confinados, sem abraços nem beijos nem manifestações de afecto, nem festas, sentimos a falta que os outros nos fazem.
Temos tempo para a família. Agora, evidentemente, sem esquecer os amigos, poderemos entender melhor a força e o apoio da família. Mas, com as crianças em espaços limitados e num tempo que se alonga sem novidades outras, será necessário fazer apelo à inventividade criativa. É preciso superar o tédio do mesmo e aprender a paciência, lembrando aquela palavra de Jesus: “com a vossa paciência salvareis as vossas vidas”. Será também necessário pedir ajuda para que, com o stress, a violência doméstica se não agrave. Disse anteontem a Marta Reis, do jornal i, Constantino Sakellarides, especialista em saúde pública: “A primeira regra é não embirrarmos uns com os outros”.
5. Para terminar, não posso deixar de agradecer tantas provas de amizade e cuidado comigo, vindas de tantas partes e de tantos amigos e nomeadamente de antigos alunos. Desejo a todos, a todas, de coração, saúde. E salvação. A palavra latina salus está na base de saúde e também de salvação.
E lembro os versos famosos de Friedrich Hölderlin, cujo 250.º aniversário do nascimento se celebrou anteontem, Sexta-Feira, 20 de Março: “Wo Gefahr ist, Da/ wächst das Rettende auch”: Onde está o perigo, aí cresce e aumenta também o que salva.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 MAR 2020