Estamos em tempo de guerra, no qual não se limpam armas. Temos de reconhecer que sabemos muito pouco desta epidemia, e que só a prevenção e a tentativa de romper o circuito infernal da transmissão do vírus poderá ter resultados. Participamos num jogo da cabra-cega em que todos temos os olhos vendados e temos de estar cientes disso mesmo. Com as escolas fechadas, com a economia e a sociedade em suspenso, temos de usar do melhor modo possível os meios que temos ao nosso alcance. A atividade desenvolve-se de modo diferente do habitual, mas não podemos cruzar os braços. O que tem de ser feito, não pode ficar por fazer. O crescimento económico sem dúvida será afetado, a criação imediata de riqueza também, mas temos de pensar no desenvolvimento humano, em salvar vidas e proteger a saúde pública. Deveremos tomar consciência de que a sociedade e a economia têm de dar prioridade absoluta às pessoas. Ao medo devemos saber contrapor o sentido da responsabilidade, a atenção e o cuidado.
O verdadeiro desenvolvimento humano, numa perspetiva de “ecologia integral” (usemos a palavra sustentável) parte da ideia essencial de que os bens que recebemos para administrar são sempre uma responsabilidade partilhada por todos – como nos diz o Papa Francisco na encíclica “Laudato Si’”. Devemos agir em conformidade. José Gil afirmou há pouco que esta crise antecipa (e deve preparar-nos) as grandes ameaças ambientais. Tem razão. Sejamos, pois, práticos, coloquemo-nos do lado das soluções. O ensino a distância deve ser aproveitado para reforçar os elos entre escola-família-comunidade. E a cultura (a música, as artes, o pensamento, o conhecimento em geral…) pode transmitir-se através dos meios digitais Há que apoiar tais iniciativas. Não se trata de interromper a sociedade, a economia e a democracia, mas de encontrar caminhos para reforçar a importância da solidariedade voluntária. O consumismo desenvolveu o imediatismo e o desperdício. Sofremos esses efeitos. Como ficou claro na crise de 2008, a indiferença relativamente aos outros foi evidente, a crise dos refugiados alargou-a, a tecnologia tornou-se um fim e não um meio, a ilusão ocupou o lugar da verdade e da boa informação. A complexidade e o rigor são incompatíveis com a lógica sincopada do “twitter”. Ter tempo para pensar é fundamental. A comunicação social de qualidade sabe-o bem. Mas estamos a sofrer as consequências de uma atitude perniciosa que se mantém, a do primado do imediato e da indiferença. É verdade que há sinais de responsabilidade cívica, mas mesmo aí deveremos ser muito exigentes uns com os outros.
Eis por que razão importa lembrar o seguinte:
(a) Perante esta situação inesperada, mas suscetível de se repetir noutras circunstâncias, importa compreender que a sociedade contemporânea é dominada pela complexidade e pela coexistência de fatores múltiplos que determinam a evolução dos acontecimentos;
(b) Só a compreensão da importância da cultura, enquanto memória e experiência, poderá permitir dar à economia um sentido que ponha em primeiro lugar o desenvolvimento humano, devendo o crescimento sustentável garantir uma partilha justa dos recursos e uma equidade intergeracional;
(c) Falar de cultura significa associar as humanidades à ciência e à educação, não podendo dissociar-se esses três fatores dos quais depende o progresso, a qualidade de vida e a emancipação social e pessoal;
(d) Longe de ser um luxo, a cultura pressupõe a capacidade de criar e de inovar, que tem a ver com a capacidade do artista, com as qualidades do cientista, com a força mobilizadora do cidadão ou com o afeto do cuidador
(e) Numa emergência como a atual, importa tirar as lições das experiências em curso: o teletrabalho e a ligação em rede poderão abrir novas perspetivas no tocante à coesão social, à entreajuda, à inclusão e à partilha de recursos;
(f) A valorização da cultura determina a recusa do espontaneísmo, a necessidade de planeamento, o reconhecimento da importância da aprendizagem e do rigor sem o que as consequências são dramáticas (como temos visto nos casos da epidemia descontrolada);
(g) A cultura é, de facto, transversal, liga a sociedade toda na sua diversidade, exige a educação de qualidade para todos, coloca a aprendizagem no centro do desenvolvimento e obriga a distinguir meios e fins, tecnologia e saber, informação e conhecimento. Se parece que vivemos uma estranha aventura de ficção e se tomamos consciência de que podemos usar melhor o nosso tempo e os nossos recursos urge entender como a cultura pode ajudar…
Guilherme d’Oliveira Martins
publicado no Jornal Público, a 23 de março de 2020.