A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Vozes Íntimas” de António Osório (Assírio e Alvim, 2008) é um conjunto de tocantes invocações, sempre poéticas, dotadas de lucidez e de uma especial hospitalidade. Reencontramos em cada página, em cada linha, o poeta que bem conhecemos – permanente interrogador sobretudo das pessoas. Aliás, este livro é uma obra com pessoas e recordações. E logo na dedicatória, sente-se que a memória é a matéria-prima fundamental que vamos encontrar. Heliodoro Caldeira, António Bustorff Silva, Joel Serrão e Francisco de Albuquerque Veloso estão bem presentes, vivos, fonte de exemplo e de experiência, que António Osório quis destacar, apresentando-os nesta sentida visita ao Santo dos Santos da sua existência.

A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de Maio de 2008.



“Vozes Íntimas” de António Osório (Assírio e Alvim, 2008) é um conjunto de tocantes invocações, sempre poéticas, dotadas de lucidez e de uma especial hospitalidade. Reencontramos em cada página, em cada linha, o poeta que bem conhecemos – permanente interrogador sobretudo das pessoas. Aliás, este livro é uma obra com pessoas e recordações. E logo na dedicatória, sente-se que a memória é a matéria-prima fundamental que vamos encontrar. Heliodoro Caldeira, António Bustorff Silva, Joel Serrão e Francisco de Albuquerque Veloso estão bem presentes, vivos, fonte de exemplo e de experiência, que António Osório quis destacar, apresentando-os nesta sentida visita ao Santo dos Santos da sua existência. E se dúvidas houvesse é Cecília Meireles quem começa por dar o santo e a senha desta leitura iniciática, numa das extraordinárias cartas enviadas a Maria Valupi – a “fidelidade do sentimento” como “forma suprema de dignidade humana.



O QUE SE SENTE AQUI?
A amizade, sempre a amizade, está bem presente, sem limitar o talento e a serenidade. E a memória dos outros segue a do poeta, enriquecendo-a. A memória torna-se fio condutor, caminho, direcção. “É dado aos vivos amar a voz dos seus, ainda quando afastada para muito longe”. E os segredos que se revelam são modos de encontrar corpos e almas, de revelar formas de fidelidade e de dignidade – como disse Aristóteles “o prazer nunca foi inimigo nem da sabedoria, nem da bondade”. E eis que a invisível presença das “vozes íntimas” se torna ilustração de um prazer por vezes doloroso. Comece-se por Mário Botas e pela sua criação subtil, mágica e dramática. “O que pinto gosta de se encontrar com as pessoas, sobretudo com as palavras dos outros”. Ao lermos o ensaio e a transcrição das cartas de M. Botas, sentimos o sentido da “incerteza do fim” – e vemos, pelas palavras do poeta, o caminho em direcção a uma maturidade que evolui a galope nesses dias do fim. E António Osório considera essa morte como infame, sem poder interpretar a vontade de Deus e dos deuses que levam primeiro aqueles que amam. “Este carteiro que nunca vi merecia um poema seu (diz Botas). Chegou às minhas mãos o correio, suponho que de vários dias, às dez da noite de domingo, sendo posto debaixo da porta depois das sete, hora a que saíra. É um carteiro boémio atraído talvez por este luar que tem banhado a serra”… A ironia do pormenor é o apelo à poesia reveladora dos pequenos mistérios da vida. E, continuando a falar de venturas, vem o achamento inesperado (e quase improvável) dos poemas de Vivaldi – os quatro sonetos das estações. Graças à persistência do poeta e às suas raízes florentinas, eis que uma outra face do prolífero músico é encontrada – e é um grande poeta, Ezra Pound, que vale ao grande músico e poeta, pela criação de uma fundação inestimável. Nem tudo neste mundo é aleatório e disforme… E ouvimos ainda António Sérgio, pedagogo e filósofo como os da antiguidade: “A morada na Travessa do Moinho de Vento era como ele: a casa de uma pessoa disciplinada, com os livros e os papeis arrumados, e de um discreto bom gosto. (…) Um professor, um filósofo, interessando os jovens pela sabedoria”. E o jovem poeta, que fazia a primeira conferência em público no Tivoli, sobre o “Rio Sagrado” de Jean Renoir, pôde conhecer ali o mestre, por um convívio que se revelaria de enorme influência. Mas outra surpreendente voz é a de Camilo Pessanha, bem presente na invocação de João de Castro Osório, o autor do “salvamento” da “Clepsidra”. De facto, foi esse primo quem com o fervor da inteira dedicação pela poesia e a lúcida, mas veemente admiração por Camilo Pessanha, transcreveu os poemas ditos de memória, em casa de Ana de Castro Osório, sua mãe, depois revistos pelo genial autor. Dir-se-ia que João de Castro Osório é uma personagem que emerge entre a criação e o talento, entre o reconhecimento e a representação da arte – “suave e fundo sono em que se perde / a aspiração cruel da eternidade”.

CRISTOVAM DE PAVIA & Cª. 
Pavia é um caso à parte nestas vozes íntimas. É uma voz onde confluem várias vozes no cenário do Liceu D. João de Castro, onde António Osório encontra ainda Pedro Tamen, Nuno Peres, Rogério Fernandes, Luís Sousa Costa, Vasco Cabral. Cristovam era filho de Francisco Bugalho – o poeta da “Presença”, morto prematuramente em Janeiro de 1949. E se há um drama em fundo, há a lembrança fantástica do comboio eléctrico do Professor António Flores, no prédio da rua 1º de Maio, ao Calvário. E, entre os deuses da poesia (onde estavam os mais influentes do tempo), emergia a estrela cintilante de Cristovam, “simples e cordial, com o seu sorriso e os belos olhos verdes sorridentes e carinhosos”. E a poesia era um dom, vindo dos genes, cultivada na doçura. Sebastião da Gama, José Régio, Cecília Meireles, Manuel Bandeira – e a sombra inequívoca de Francisco Bugalho: “Meu menino tem nos olhos os mistérios / Dum mundo que ele vê e que eu não vejo / Mas de que tenho saudades infinitas…”. Cristovam era o menino que António Osório recorda, nos “melhores instantes da felicidade fraterna” – ficando na sombra uma profunda mágoa saudosa. “E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho, / Eu tenho saudades, saudades, saudades / Dum outro menino…”. Mas de saudades se fala ainda, a propósito de Sebastião da Gama, “personalidade fascinante” que entusiasmou Pascoaes e Régio ou Nemésio (rendido à “Serra-Mãe”). E David Mourão-Ferreira disse que “cada vez mais, entre as grandes graças da minha vida” está o “facto de ter sido amigo de Sebastião da Gama”. E em volta de uma simpatia contagiante, há mais vozes íntimas. Sebastião era assim um misto de camponês e pescador, habitante do Portinho da Arrábida. A serra e o poeta fundem-se intimamente, o aluno, o professor, o adorador da natureza, o émulo de Frei Agostinho da Cruz – tudo se junta. E Maria de Lourdes Belchior disse, por todos: “é para os da sua geração e para os novos que com ele conviveram ou com ele convivem através da palavra escrita, testemunho de Beleza e penhor da Esperança”. Mas, morrendo tão novo, ficou a “meio da canção”. Joana Luísa pôde continuar a persistente tarefa de revelar o poeta e de manter viva a mensagem de quem tinha “os livros debaixo do braço, farnel / de poesia ambulante” (“A Ignorância da Morte”). E vemos o poeta à conversa com Sebastião da Gama na Estalagem do Portinho – a recitar versos do “Inferno” de Dante. “No Portinho sabe-nos bem estarmos vivos”. Sabia bem, mas depois veio “de chofre, a patada, relincho, trigo por ladrão gadanhado”. Com que sentimento lemos o melhor elogio que podia ser feito ao homem bom que foi Fernando Assis Pacheco – grande poeta, jornalista de mão cheia, cidadão de várias estrelas. “Na mão empunhava a arma, e com ela enfrentava o inimigo. Só que não tinha nenhuma bala – e não dera um único tiro durante aqueles anos (…) Fizera a guerra mas estava inocente. Não desertara nem matara; sofrera”. Raul de Carvalho, o mestre, revela que o poeta já tem asas para voar – daquelas que não se compram no Mercato de San Lorenzo. Angel Crespo, o lusitanista emérito, ao ver Lisboa “parece que acabou de chegar e vê a cidade, como um jovem, de olhos enamorados”. Umberto Saba é visto em Trieste, cidade do Império Austro-Húngaro, como um desafortunado que, perante a dureza da mãe, é acolhido no regaço da velha ama com que rezava clandestinamente o Pai-Nosso em esloveno, antes que adormecesse. E há a mágica presença de Montale a dizer que “Portugal é um dos países latinos que o céu melhor preservou da vulgaridade e onde a medida das coisas ainda é humana”. E em San Felice a Ema está a sua campa, com Drusilla, a “Mosca”, a mulher, na companhia de Dante e Ariosto, a fazer lembrar “quella lotta fra l’uomo e Dio che è alla radice della nostra condizione umana”. Mas, há ainda Carlos Nejar, a celebrar a vida, entre o clássico e o moderno, “aventura humana: a esperança / não há outra couraça / ou fortuna”. Por fim, Maria Valupi (Maria Dulce Lupi Cohen Osório de Castro, a tia por excelência, casada com António Pereira Osório de Castro, querido como um pai, que encontramos na dedicatória ainda de “A Ignorância da Morte”), amiga de Cecília Meireles: – “Chorarei quando for preciso. Essas são palavras tuas, Cecília / Tu que eras grande, maior / As disseste por todas as bocas que servias”. São vozes íntimas, sempre sentidas, sempre presentes. Estes ensaios são fragmentos de afectos, de cordialidade, de melancolia, de lembranças e desejo. De imensas saudades, em suma…




E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença

                                                                  Guilherme d’Oliveira Martins

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