A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Humberto Delgado – Biografia do General Sem Medo” da autoria de Frederico Delgado Rosa (Esfera dos Livros, 2008) passa a ser uma obra de referência não apenas quanto à figura do General Delgado, mas também relativamente à compreensão do Estado Novo, especialmente no seu período final. Com efeito, a candidatura presidencial de 1958 e o que se segue permitem compreender aspectos importantes do regime surgido em 1926 e do seu desenvolvimento: o carácter heterogéneo do movimento inicial, a sua ambiguidade, a tensão entre isolamento e abertura potenciada pela Segunda Grande Guerra, a influência norte-americana, o atlantismo, a necessidade de tirar consequências da vitória dos aliados, os efeitos da modernização, as divisões no seio do Estado Novo e as contradições da oposição…

A VIDA DOS LIVROS
De 12 a 18 de Maio de 2008
.



“Humberto Delgado – Biografia do General Sem Medo” da autoria de Frederico Delgado Rosa (Esfera dos Livros, 2008) passa a ser uma obra de referência não apenas quanto à figura do General Delgado, mas também relativamente à compreensão do Estado Novo, especialmente no seu período final. Com efeito, a candidatura presidencial de 1958 e o que se segue permitem compreender aspectos importantes do regime surgido em 1926 e do seu desenvolvimento: o carácter heterogéneo do movimento inicial, a sua ambiguidade, a tensão entre isolamento e abertura potenciada pela Segunda Grande Guerra, a influência norte-americana, o atlantismo, a necessidade de tirar consequências da vitória dos aliados, os efeitos da modernização, as divisões no seio do Estado Novo e as contradições da oposição…
 



Humberto Delgado na Praça Carlos Alberto (Porto) a 14 de Maio de 1958.


UMA DECISÃO FUNDAMENTAL
Numa reunião com personalidades políticas do Porto, havida na Direcção-Geral de Aeronáutica Civil, que teve lugar em 4 de Janeiro de 1958, o arquitecto Artur Andrade foi claro perante uma declaração e uma pergunta do General Humberto Delgado: “Em princípio aceito (ser candidato) e concordo, mas gostaria que me explicasse porque, tendo a Oposição nomes de prestígio intelectual e de todos conhecidos, me procuram a mim para candidato?”. “Pretende-se significar às Forças Armadas (disse Andrade), se os seus responsáveis ainda têm um mínimo de capacidade de entendimento e de personalidade, que a Oposição, podendo escolher um candidato entre nomes de indefectíveis democratas (…), ao indicar um general no activo está a querer exprimir claramente o desejo de esquecer o comprometimento político dos militares, de, em resumo, querer esquecer o passado, facilitando-lhes o caminho da reabilitação. Não para incitamento à revolução, que é coisa muito mais complexa, mas para que exerçam a sua autoridade junto de Salazar, exigindo eleições honestas. E se tanto não se conseguir, pelo menos para provocar dentro das Forças Armadas a discussão, ponto de partida da divisão”. Em poucas palavras estava dada a explicação de tudo. E, apesar de o futuro candidato duvidar de que os militares pudessem compreender uma mensagem através de si ou de descrer que Salazar pudesse viabilizar eleições livres e honestas, o certo é que pretendia dar um abanão ao regime e atacar Salazar e Santos Costa, pondo, no entanto, uma condição para aceitar: “que é a de não desistir. Iremos até ao fim, apesar de eu saber que serei derrotado, pois não vejo possibilidades, no meio de tanta coisa falseada”… O General sabia exactamente o que queria e acreditava que o país ansiava por uma oportunidade destas… Mas não se fizeram esperar as incompreensões no seio das oposições, a principal das quais tinha a ver com o facto de o General ser um homem oriundo do regime. O Partido Comunista, por exemplo, considerou estar-se perante “um ardil do governo de Salazar”. No entanto, a candidatura nascera da ideia de Henrique Galvão, antigo colaborador de Salazar na Emissora Nacional, que se tornara crítico da situação colonial e estava preso. Depois, António Sérgio foi quem no seio da oposição foi decisivo ao ter a lucidez e a determinação para convencer um conjunto de pessoas, à partida desconfiadas e com pouco entusiasmo, de que o antigo Adido em Washington e então Director-Geral da Aeronáutica Civil era a melhor escolha. O “franco-atirador”, autor dos “Ensaios”, com sentido táctico apurado, defendia “desde há muito que não era conveniente uma passagem imediata do poder para a mão de políticos da Oposição, acreditando ao invés que seria preferível um período de transição encabeçado por um oficial general ou junta militar que garantisse o cumprimento do artigo 8º da Constituição, referente às liberdades fundamentais, que o governo salazarista desrespeitava na prática corrente e também na teoria…”. E é impressionante ver como de uma posição aparentemente isolada foi possível chegar a uma candidatura única, dotada de uma dinâmica quase vitoriosa, apesar de todos os entraves e bloqueamentos.
UM PERCURSO FULGURANTE
A biografia de Humberto Delgado agora dada à estampa reúne um conjunto notável de elementos nunca antes apresentado, permitindo a compreensão de uma época e de uma vida. Desde o berço dos Delgados, na aldeia de Boquilobo (Torres Novas), acompanhamos o percurso de um jovem, com muita fibra (ou estamina, como gostava de dizer), nascido a 15 de Maio de 1906, no Ribatejo, que frequenta o Colégio Militar, vocacionado para seguir a arma de Artilharia, que se torna o mais jovem alferes da Europa e depois piloto-aviador do Exército em Maio de 1926 (“antes de ser aviador sou militar”). Integrado na Esquadrilha de Aviação “República” da Amadora, o jovem piloto participa activamente no golpe militar de 28 de Maio de 1926 e na defesa da ditadura, em Fevereiro de 1927. Escreverá, aliás, sobre o tema uma peça radiofónica, intitulada “28 de Maio”, difundida pela Rádio Clube Português em 1939. De forte personalidade, Humberto não esconde o seu desejo de uma ordem autoritária. É fugazmente secretário do Ministro da Instrução Costa Ferreira, que será afastado por excesso de republicanismo. E em Janeiro de 1933 publica “Da Pulhice do Homo Sapiens”, onde denuncia “a miséria moral do escol português”, excedendo-se em considerações e linguagem depreciativas sobre oficiais da Aeronáutica no activo. Resultado: dez dias de prisão, livro esgotado, encómios de Rolão Preto e muitos incómodos. Em Outubro desse ano é, no entanto, promovido a capitão, já que a punição “não afectava a sua idoneidade moral”. Ingressa, de seguida, no curso de Estado-Maior, e tem um forte envolvimento político na defesa do regime no jornal “A Verdade” de Costa Brochado. Tem papel fundamental na organização militar da Legião e da Mocidade Portuguesa (1936-38). Torna-se um dos mais activos propagandistas do Estado Novo, contando então com o especial apreço de Salazar. Em 1938 parte para África numa missão do Corpo de Estado-Maior com o objectivo de estudar a defesa militar das colónias de Angola e Moçambique. Quando regressa a guerra tinha já incendiava a Europa. Assina crónicas militares, onde afirma que o exército russo é um “osso duro de roer”, mas tanto bastará para ser acusado de “comunista” e “democrata disfarçado”.
UM VOLTE FACE LENTO
Ao longo de mais de 1200 páginas, o autor permite-nos seguir apaixonadamente a vida do biografado. E o volte face lento começa a sentir-se nos Açores na elaboração do “Plano de Colaboração Anglo-portuguesa em caso de emergência” e no desenvolvimento de um processo por insubordinação nos Açores (do brigadeiro Ramires) rapidamente resolvido por Delgado, mas com o qual há quem pretenda atingi-lo (uma vez ilibado, será o tema da peça “Asas” levada à cena do Trindade). De qualquer modo, Delgado é preservado (por Santos Costa) e é-lhe confiada a organização da Linha Aérea Imperial e dos Transportes Aéreos Portugueses (1944-46), desempenhando depois importantes funções na Organização da Aviação Civil Internacional no Quebeque (1947-50). Já regressado a Portugal, em 1952, é confrontado com a prisão de Henrique Galvão, seu amigo e companheiro no 7 de Fevereiro. A partir daqui nada será como dantes. Parte para Washington onde estará durante cinco anos (1952-57) na NATO e como adido militar aeronáutico, mas não deixará de apoiar e de visitar Galvão quando vem à pátria. Os ventos norte-americanos levam a que as críticas ao regime subam de intensidade e o destino começa a traçar-se, primeiro num tom épico e depois num tom trágico. Igual a si mesmo, Delgado irá em frente até às últimas consequências. Frederico Delgado Rosa é exaustivo e privilegia a serena objectividade, mesmo quando ela é difícil. E o documento impõe-se.
                                                    Guilherme d’Oliveira Martins


E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença.

Subscreva a nossa newsletter