O LUÍS E O NOSSO QUEIROZ
O Luís Santos Ferro era uma imprescindível companhia. Com ele era um verdadeiro deleite a conversa e sobretudo o deambular no universo romanesco de Eça de Queiroz, que familiarmente designava como o “nosso Queiroz”. Nestes últimos dias já senti a necessidade incontida de lhe perguntar alguma coisa ou de lhe pedir ajuda sobre vários enigmas desse conjunto tão familiar como fascinante e heterogéneo. Infelizmente, deixou-nos inesperadamente. Estivemos a última vez juntos num inolvidável concerto na Gulbenkian, e encontrávamo-nos nas sessões mensais do Conselho Literário do Grémio. A sua formação de engenheiro tornou-o uma simbiose inesquecível entre o rigor e a liberdade de espírito. Quando recebia um livro novo de referência, apressava-se a verificar se tinha um índice onomástico, e perante a sua falta tão comum, infelizmente (contra mim falo), era absolutamente demolidor, uma vez qua a falta desse precioso auxiliar limitava drasticamente a plena utilidade da obra. Os seus amigos sabiam que a obra queiroziana não tinha para si segredos. A partir da dúvida metódica, ele próprio era sistematicamente interrogativo. Na sua perceção de privilegiado observador desejava evitar que faltasse alguma coisa, que não desejava perder. De facto, como bem sabia, quando se lê ou relê uma obra, há sempre qualquer coisa, um pormenor, uma ninharia, que não topamos no momento próprio e que se revela fundamental. Que é a literatura senão a chave para entendermos a vida e o seu sentido? Mas não era apenas José Maria Eça de Queiroz que estava em causa, era o tempo e a História, eram as artes e os valores. Por outro lado, era um extraordinário melómano, no sentido mais rico da palavra. Se dúvidas houvesse, bastaria visitar o extraordinário inventário de referências musicais na obra queiroziana, que se encontram no seu artigo integrado no Dicionário coordenado pelo Arquiteto A. Campos Matos. E aí encontramos não só é o conhecimento profundo da criação literária de Eça, mas também a ligação exata às mais difíceis referências artísticas e musicais.
CICERONE EXÍMIO
Tendo como cicerone o Luís Santos Ferro, a compreensão de qualquer um dos romances de Eça ou da sua obra tornava-se motivo do maior fascínio, numa descoberta para além do que é comum encontrar-se. Por exemplo, na sua apreciação, as referências musicais na obra de Eça não são um “mero elemento decorativo, acessório ou supérfluo na composição”, mas antes fatores de qualidade, reunindo “componentes atentamente doseadas e preenchendo função específica, ponderada, de efeito sabiamente calculado”. Como disse Catherine Dumas, “a música representava para ele (E.Q.) o mais alto grau de arte e expressão mais completa da espiritualidade”… Lembre-se a récita do “Fausto” de Gounod, a que assistiram em O Primo Basílio Luísa e Jorge. O romancista seguiu fielmente o que se passava em cena – numa ligação perfeita ente a encenação, a ação e a música. Mas não se trata apenas da invocação da forma, como se de um apêndice erudito se tratasse; não, o que importa é encontrar uma chave simbólica capaz de ligar o enredo narrativo e os sinais dramáticos. Na invocação da “Traviata” e de “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas, que lhe serve de base, a ópera e o romance surgem naturalmente associados ao destino funesto de Luísa, que se prenuncia. O mesmo se diga nas referências à “Norma” de Bellini e à “Lúcia de Lammermoor” de Donizetti, cujo tema estava nas leituras de Luísa de Walter Scott… Essas alusões não eram gratuitas ou inúteis, e Luís Santos Ferro era único na procura e descoberta desses pequenos segredos e no modo como os estudou e partilhou no extraordinário texto sobre música do Dicionário de Eça… Num encontro ocasional, poderia ser no seu antigo gabinete da Fundação Luso-Americana na Rua do Sacramento, no Grémio, na Gulbenkian ou em S. Carlos, era fácil familiarizar-nos em animada conversa com as principais personagens queirozianas, designadamente com Carlos Fradique Mendes. Os textos são inesquecíveis. “Durante três anos Carlos tocou guitarra pelo Penedo da Saudade, encharcou-se de carrascão na tasca das Camelas, publicou na Ideia sonetos ascéticos, e amou desesperadamente a filha de um ferrador de Lorvão”. E ali ficávamos a invocar as diversas encarnações Fradique, na filiação partilhada de Antero, Batalha Reis e Queiroz, mas também Afonso da Maia, Acácio, Pacheco, Dâmaso, Alencar, Cruges, Craft… Esse o prazer supremo de Luís, o puro sonho criador. Afinal, esse conhecimento fazia parte do extraordinário usufruto da imaginação e da inteligência. E vinha à baila o fado, que, contra tudo e contra todos, João da Ega defendera contra a opinião de Craft.
COMPASSSOS GENTIS E MELODIOSOS
E os relógios? Esses eram cantantes variados. Fradique regulava a vida metodicamente por um que fazia soar “compassos, gentis e melodiosos, de Haydn, Cimarosa ou Gluck”. Mas, rindo connosco, logo vinha à lembrança o facto de, em casa de Jorge e Luísa, ser “o cuco que marcava o tempo e enchia o silêncio”. E os pianos? Acácio e Dâmaso possuíam pianos, mas apenas decorativos e mudos. Esse facto denunciava o respetivo carácter. Amélia e Genoveva (da Tragédia da Rua das Flores) tocavam piano; no Ramalhete, havia piano, ora bem ora mal tocado consoante o tangedor. Mas, além, dos instrumentos (sempre Luís Santos Ferro a lembrá-lo) havia as comparações das personagens romanescas com figuras celebrizadas em obras musicais. João da Ega aparece comparado ao “Mefistófeles” de Gounod; Genoveva aparece associada à cançoneta “L’Amant d’Amanda”, muito em voga na época em Paris… E o namoro de Basílio e Luísa desenvolve-se e encerra-se ao som da canção de Médjé ainda de Gounod. Maria Eduarda é um caso especial. A música marca a sua aparição. E, além do mais, era uma excelente pianista. As suas interpretações de Chopin e Mendelsohn são elogiadas pelo rigoroso Cruges, e é a ária de Ofélia que a simboliza – “Pâle et blonde /Dort sous l’eau profonde”. E quando toda a tragédia se desenha, e Ega já sabe do terrível segredo: Maria nunca parecera tão bela. “Carlos era positivamente o homem mais feliz destes reinos”. Mas são as palavras finais do poema cantado que encerram o terrível augúrio: “Pour toujours adieu, mon doux ami! (…) Pour toi je meurs! Ah ah je meurs”. De facto, como insistia Luís, “na narrativa, mesmo quando de música não se trata”, esta existe no estilo da prosa e Guerra da Cal dissera já que literariamente Eça empregava sem reservas, “toda a classe de recursos de natureza musical”… O Luís Santos Ferro pôde, assim, como ninguém, ir ao âmago da narrativa de Eça de Queiroz, permitindo-nos compreender a complexa oficina criativa do extraordinário romancista. Mas neste momento é já a saudade que impera, sobretudo quando retiramos da estante qualquer das obras que tanto amava. Cada palavra, cada ideia lembra-nos tudo o que sabia e todo o prazer que sentia, e não esquecemos.
Guilherme d’Oliveira Martins
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