A VIDA DOS LIVROS
De 31 de Março a 6 de Abril de 2008.
“Convergências e Afinidades – Homenagem a António Braz Teixeira” (Centro de Estudos de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008) é constituído por um conjunto de sessenta e três textos de diversa índole, onde é analisado o lugar do pensamento filosófico na cultura portuguesa, a partir do magistério e da influência de António Braz Teixeira. Trata-se de um volume de dimensões apreciáveis (968 páginas) que, pela riqueza dos contributos, passa a constituir um precioso auxiliar para quem queira conhecer uma componente significativa do pensamento português contemporâneo.
Lima de Freitas, Preste João, Acrílico em madeira, 1986.
DIÁLOGOS SUBTIS
Encontramos aqui vários diálogos subtis, em torno de alguém que não pode ser catalogável, uma vez que sempre procurou, ao longo da vida, trilhar caminhos, onde o espírito se revelasse, como dom inesperado, indizível, incerto, imprevisível – ou não fosse a ideia de Deus uma presença constante na sua obra, envolvendo a relação entre razão e fé, pensamento e crença, filosofia e religião, em regra analisada ou discutida no horizonte do cristianismo. Estamos perante uma obra de 53 anos, que se mantém viva, porque procura compreender, dando nota de vários desafios e de várias vozes. O livro tem três partes e começa pelo homem e pela obra, onde encontramos um caleidoscópio vivo em que se destaca o filósofo, o pensador multifacetado, o historiador da filosofia – o filósofo do Direito, mas também o filósofo da Cultura, o especialista de Finanças Públicas e do Direito dos Impostos. E o certo é que um dia, em S. Paulo, Miguel Reale disse-me que chegara à filosofia, a partir da reflexão sobre o consentimento dos cidadãos relativamente aos impostos, pedra angular do Estado de Direito.
“RAZÃO ATLÂNTICA”
António Braz Teixeira pôde unir ética, filosofia e direito, referindo-se a uma família espiritual enraizada na tradição de inspiração agostiniana, empenhado na reflexão sobre temas como a tristeza do finito, a Graça, a liberdade, a nostalgia do Absoluto, o “saber do coração”, a itinerância da pessoa humana, o mistério da origem. E não podemos deixar de lembrar a influência do “historicismo axiológico” vindo de Miguel Reale – para quem “os valores não são objectos ideais, modelos estáticos, mas algo que se insere na nossa experiência histórica através de um processo ou de um nexo de implicação e polaridade”. Essa dinâmica, esse devir encontra-os o nosso autor na poesia e no ensaio de Teixeira de Pascoaes (o genial escritor de “S. Paulo”), mas naturalmente em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra. Os textos desta obra flúem de um lado e do outro do Atlântico e tantas vezes Braz Teixeira é-nos apresentado como o sereno revelador de incertezas e mistérios que a cada passo se manifestam. Ou não fosse a Filosofia, no dizer de ABT, um “caminhar gradual na busca da verdade”. Ou não fosse a humanidade a afirmação do “ser que recebeu a possibilidade de se fazer livre” (na esteira de Leonardo). Mas sente-se a bússola da razão, num balanceamento constante com o espírito, segundo um conceito que “excede os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica da experiência, e se abre ao essencial e irrecusável valor e significado gnóstico da sensação, da intuição, do sentimento de imaginação e de crença”.
FILOSOFIA DA SAUDADE
Mas vamos à “saudade”, o “delicioso pungir de acerbo espinho” ou o “mal de que se gosta e o bem que se padece”, como lembrança e desejo. Fixa-se aí o cerne da nossa identidade, nos seus sete ciclos: (i) dos cancioneiros galaico-portugueses; (ii) de D. Duarte e do “Leal Conselheiro”; (iii) de Bernardim, Camões e Frei Agostinho da Cruz; (iv) de D. Francisco Manuel e António Vieira; (v) do oitocentismo garrettiano; (vi) da Águia e da Renascença Portuguesa a Leonardo Coimbra; (vii) de Joaquim de Carvalho, António Magalhães, Afonso Botelho, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, António Quadros, Dalila Pereira da Costa, Pinharanda Gomes e António Braz Teixeira. O certo é que encontramos no homenageado o retrato do sábio prático aristotélico” (no dizer de Manuel Patrício) – o homem que sabe viver superiormente a vida e que sabe que a idealidade mora na realidade e não na irrealidade. Daí o seu fino entendimento da ética e do direito, do conhecimento e da compreensão. É um intelectual preocupado com a construção de pontes e, como diz o “nosso” Miguel Real, é indubitavelmente o pensador português que mais solidamente tem criado a ponte cultural reflexiva entre Portugal e o Brasil. É, assim, um fazedor de convergência e afinidade, a partir da dupla matricialidade da língua portuguesa.
PRIMADO DA INTERROGAÇÃO
Ao percorrermos os diversos textos, encontramos a recorrência de uma estimulante preocupação com a necessidade de uma cultura filosófica aberta, “interrogativa, problemática e não solucionante”. Até por isso, devemos agradecer a António Braz Teixeira, o facto de ter possibilitado este encontro de múltiplas vozes que nos permitem uma melhor compreensão da cultura portuguesa. A cada psso, ouvimos o filósofo sentado no Olimpo a dialogar com os seus: Leonardo, Marinho, Álvaro, Delfim, Pascoaes, mas também Bruno, Amorim Viana, Antero… – tendo a seu lado Afonso Botelho e António Quadros, dois ausentes bem presentes, que saudosamente nos acompanham na sua cordialidade de pensamento e acção. A segunda parte do livro é sobre o Pensamento português e luso-brasileiro e permite-nos tomar contacto com temas e amigos próximos do nosso homenageado. Antero de Quental colaborador da Revista Ocidental, as origens arcaicas dos mitos da saudade, o recurso ao direito natural no pensamento de D. António Ferreira Gomes, a heterodoxia e o humanismo de Sampaio Bruno, o comparatismo de António José Saraiva ou as culturas ibéricas em Schelling e Hegel são alguns exemplos de um conjunto de textos, todos eles de grande interesse. Aqui é a homenagem à pessoa que está em causa – e, mesmo nestes temas, sente-se que o “sábio prático” está bem presente – interrogando, problematizando e pondo-se ao caminho no acto de pensar e de viver.
MOTES E GLOSAS
A terceira parte, vária, permite-nos encontrar Castanheira Neves, Adelino Cardoso, Aires do Nascimento, Artur Torres Pereira, Carlos Henrique do Carmo Silva, Cassiano Reimão, Cerqueira Gonçalves, Barata Moura, Sousa e Brito, José Enes, José Gonçalves Gama, José Lamego, Leonel Ribeiro dos Santos. Vários motes e várias glosas em que a referência fundamental é um filósofo e a filosofia. Esta obra tem, aliás, essa característica singularíssima de desenvolver em vários tons, registos e instrumentos, o acto essencial de pensar. E cada fragmento torna-se uma janela que se abre perante a paisagem variada e atraente. E para quem ler fica o conselho sincero segundo o qual há matéria sempre interessante e atractiva, sobretudo para quem deseja entender a razão e a vontade, o pensamento e a fé, as filosofia e a crença. E António Braz Teixeira está na berlinda desta interrogação não solucionante, e na encruzilhada de influências e propostas. E oiçamos José Marinho: “se a condição e destino se referem evidentemente ao homem, já a verdade não pode entender-se tão só como verdade do homem e para ele”. E Leonardo levanta o mistério, permeado de luz, dizendo que ao irracional do ser e da vida não é estranha a razão humana. Mas finalize-se com o próprio António Braz Teixeira: “Como actividade do espírito, a liberdade tem dois vectores ou dois sentidos essenciais: o do conhecimento orientado para verdade e o agir norteado pela justiça, pelo bem e pelos demais valores éticos”. Assim mesmo o temos conhecido, no dia a dia, ensinando, perguntando, suscitando, despertando, administrando, orientando, pensando, sempre tendo como horizontes a busca da verdade e a demanda da justiça, pautado pelo cuidadoso e sereno culto da liberdade, factor de criatividade e de cidadania, de empenhamento e de compromisso.