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Benjamim Pereira [1928-2020]

Membro da equipa que criou o Museu de Etnologia e deu a ver Portugal com o rigor científico que se impunha, manteve-se sempre exigente e generoso

Gostava do campo, de percorrer o país nas suas recolhas de alfaias agrícolas ou de instrumentos de pesca sem olhar para o calendário nem para o relógio. Entrava nos lagares e percorria aldeias com o mesmo à-vontade com que discutia a preparação de mais um livro ou de uma exposição. O que queria, sempre, era compreender objetos e práticas, mostrá-los para que também outros ouvissem falar as pessoas que com eles lidavam.
“Amava com amor inteiro as culturas populares portuguesas”, diz a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva agora que o antropólogo Benjamim Pereira morreu. Foi na quarta-feira no Hospital de Viana do Castelo, ao qual tinha recorrido após doença súbita, explicou ao PÚBLICO Clara Saraiva, presidente da Associação Portuguesa de Antropologia e sua amiga. Tinha 91 anos e um percurso que fez dele uma referência da disciplina em Portugal.

“Ele era uma alegria. Conversávamos sobre tudo. Havia sempre tempo para parar, para estar, para beber um copo de vinho”, recorda a antropóloga e realizadora Catarina Alves Costa, que com ele começou a trabalhar nos anos 1990, no Museu Nacional de Etnologia (MNE), de que Benjamim Pereira foi um dos fundadores, com António Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Jorge e Margot Dias. “Com ele aprendi muito, sobretudo uma certa naturalidade no terreno. O Benjamim Pereira sabia tanto do trabalho da terra, dos lagares, que os próprios agricultores ficavam espantados. As pessoas abriam-se, sentiam-se ouvidas.”

Nascido em 1928, em Carreço (é desta freguesia de Viana do Castelo que o funeral sairá hoje, às 15h), o antropólogo fez a maior parte da sua carreira no MNE, tendo sido o responsável por todas as exposições que ali se realizaram desde a sua criação, na década de 1960, até que se aposentou, 30 anos depois, refere Clara Saraiva num texto que sobre ele em 2009 e em que recorda que, embora tenha nascido formalmente em 1965 e esteja instalado no edifício que hoje ocupa apenas desde 1976, o MNE teve a sua génese em 1947. Foi nesse ano que se fundou, no Porto, o Centro de Estudos de Etnologia (CEE), para o qual Benjamim Pereira seria convidado em 1959. Dez anos mais tarde, o mesmo grupo de investigação pioneiro estaria ligado ao Centro de Estudos de Antropologia Cultural, ambos alicerces científicos e humanos do atual museu.

“O Benjamim, como os outros [fundadores], era apaixonado pelo que fazia. A antropologia, o centro, o museu não eram um trabalho que fizesse das nove às cinco, eram um projeto de vida”, diz Paulo Ferreira da Costa, o atual diretor do MNE, recordando o seu “espírito de rigor apuradíssimo” e a sua “incomensurável generosidade”, sobretudo com os colegas mais novos.
“Nós vivíamos os três – o Fernando, o Ernesto e eu – na mesma casa, e ao lado a Margot e o Jorge Dias. Trabalhávamos juntos, mas era rara a noite em que não nos reuníamos. Quando havia um problema, até que fosse resolvido não se deitava para trás das costas (…). Durante anos e anos, eu, que gostava tanto de cinema, não via um filme. Não havia tempo! Sábados e domingos não havia. Era um trabalho que era uma alegria! Por exemplo, grande parte daquela coleção do sargaço foi reunida num ano em que passávamos férias na Barca do Lago e aquela jangada enorme foi transportada no [meu Citroën] 2 Cavalos. Acampávamos muitas vezes quando percorríamos o país. Fazíamos umas sopas Knorr para comer”, contou o antropólogo em 2010 a Paulo Ferreira da Costa e a Cláudia Jorge Freire na revista Etnográfica.

“É uma referência absoluta da nossa antropologia e alguém que, pela exigência permanente, em primeiro lugar consigo mesmo, é um exemplo de dedicação”, diz Paulo Ferreira da Costa, que o acompanhou na preparação de uma das exposições históricas do MNE, O Voo do Arado (1996), sobre a evolução do mundo rural em Portugal. “Tem um trabalho importantíssimo, sistemático, de estudo de todo o universo rural, em particular o que diz respeito às tecnologias agrícolas e têxteis. Mas também lá estão os rituais festivos, em particular os das máscaras do Nordeste transmontano.”

A Benjamim Pereira se deve boa parte da organização das primeiras reservas visitáveis de Etnologia, as Galerias da Vida Rural, relembra o diretor, referindo em seguida que a sua obra publicada não pode ser dissociada do coletivo que se reuniu em torno do CEE e que viria a criar Etnologia. Um grupo em que, reconheceu Benjamim Pereira, se integrou de forma natural, apesar de ser o único que não tinha curso.

Mesmo depois da morte do Jorge Dias, em 1973, Benjamim Pereira, Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano continuaram a trabalhar e a publicar juntos.
“Estamos a falar de uma equipa muito particular, que deu a conhecer o Portugal real, por oposição ao inventado pela retórica do Estado Novo.”
Defendendo sem concessões dois princípios basilares – o universalismo e a investigação científica -, o grupo conseguiu subverter o objetivo que a Junta de Investigação do Ultramar, que o tutelava, tinha para o MNE, o da criação de um museu virado para os territórios ultramarinos.

Do linho à Luz

O seu percurso não se resume, no entanto, ao MNE. Benjamim Pereira foi também autor do projeto etnográfico do Museu da Luz, criado em 2003 para salvaguardar histórias e património daquela região alentejana parcialmente submersa pela barragem do Alqueva, em que trabalhou com Clara Saraiva, Catarina Alves Costa ou Catarina Mourão; e coordenou a recolha para o Museu do Abade de Baçal, em Bragança, que reabriu renovado em 2006. Esteve ainda envolvido no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova, e no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco.

Raquel Henriques da Silva viria a conhecê-lo apenas em 1997. Era, então, diretora do Instituto Português de Museus e tratava-se de salvar o que restava do Museu de Etnografia do Porto. “Apaixonei-me, como toda a gente, por aquele velho senhor que tinha sempre um menino dentro dele e que amava com amor inteiro as culturas populares portuguesas”, diz a historiadora de arte, que mais tarde haveria de o convidar a trabalhar nos projetos dos museus Abade Baçal e Francisco Tavares Proença Júnior.

Para o primeiro, recorda, filmou com Catarina Alves Costa a Festa dos Rapazes, para o segundo os processos artesanais de fabrico do linho e da seda. Para criar o núcleo do linho em Castelo Branco, o antropólogo comprou também objetos, recorda Henriques da Silva, e “fez, como sempre, uma instalação maravilhosa que introduz a vivência enérgica do trabalho no lugar incerto do museu, sem sentimentalismo, sem saudosismo, com uma radical dignidade, simultaneamente poética e científica. E cheia, a transbordar, de amor pela terra, as gentes e os saberes.”

A fotografia e o filme foram uma constante no trabalho de Benjamim Pereira, o grande produtor de imagem do antigo Centro de Estudos de Etnologia e do MNE – um acervo com mais de 90 mil entradas que muito deve, também, a Margot Dias.
Numa altura em que o filme era ainda um recurso escassíssimo e caro, Benjamim Pereira tinha já plena consciência, defende o diretor do MNE, de que a imagem em movimento era essencial para dar a perceber a realidade do uso dos objetos em contexto expositivo. Mais do que uma fonte documental, acrescenta a antropóloga Catarina Alves Costa, via o filme como uma forma de expressão.
“Benjamim Pereira queria sobretudo preservar a forma como as pessoas contavam a sua própria história, como falavam do seu dia-a-dia com aqueles objetos que haveriam de entrar para o museu”, continua a realizadora.

Foi assim, também, quando a Aldeia da Luz se preparava para a subida das águas. “Durante dois ou três anos recolhemos as imagens para o arquivo do museu. Era uma equipa pequena, mas muito próxima. O Benjamim envolvia-se muito.” Ele que, de início, disse-o em 2010, pensou em recusar o projeto: “A palavra amor tem sentido. Foi um trabalho amoroso. Eu não estava muito motivado para a participação naquele trabalho, mas lembro-me de que a decisão foi imediata, a partir do primeiro contacto com os arquitetos.”
O seu entusiasmo, garante Alves Costa, era contagiante: “Percorri o país com ele. Um dia ligou-me porque tinha encontrado um moinho com mós de cortiça para a farinha de arroz: ‘É preciso vir filmar isto depressa antes que desapareça, Catarina.’ Estava sempre a desafiar-nos para irmos para campo. Sentia-se lá bem e fazia com que também nós nos sentíssemos no lugar certo.”


por Lucinda Canelas, com Joana Amaral Cardoso, in Público | 03 de janeiro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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e apresenta sentidas condolências à família e amigos.

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