A VIDA DOS LIVROS
De 24 a 30 de Março de 2008
Flannery O’Connor (1925-1964) publicou em 1952 “Wise Blood”, dado à estampa entre nós com o título “Sangue Sábio” (Cavalo de Ferro, 2007, tradução de Nuno Batalha) que é, na obra da autora, um dos livros que mais contribuiu para a aura que tão justamente conquistou no panorama da literatura mundial. Estão aí todos os ingredientes que Flannery O’Connor tão bem sabe utilizar: o inesperado, a ironia, a capacidade extraordinária de descrever as personagens e as cenas, o dom de ver o mundo às avessas para melhor tirar partido das contradições, das dúvidas, das qualidades e dos defeitos, dos pecados e das virtudes. Já disse aqui sobre a autora, a propósito de “Um Bom Homem é Difícil de Encontrar”, que “sentimos a cada passo, na sua escrita, uma tensão muito especial entre a vida e o que está para além dela, entre a placidez do quotidiano e a violência ou o grotesco do inesperado” (ler CNC, 18.9.06). Em “Sangue Sábio” isso é especialmente evidente, quer pelo tema quer pelo seu fantástico (esta é a palavra adequada) desenvolvimento.
ENTRE A HERESIA E A GRAÇA
O enredo não é muito complicado, mas é no tratamento dos diferentes quadros e das peripécias que envolvem os protagonistas que o génio de O’Connor se revela. O jovem Hazel Motes é desmobilizado do serviço militar e regressa profundamente mudado, muito longe das influências familiares, em especial da sombra de seu avô, um antigo pregador do Sul visionário e evangélico. E o próprio nome dele tem já muito que se lhe diga, uma vez que a romancista foi buscá-lo à expressão “haze of motes”, que pode ser traduzida livremente como nevoeiro de poeira, o que permite perceber qual o estado de alma do jovem, regressado, segundo se pode presumir, da frente da segunda grande guerra. “A Bíblia negra e os óculos da mãe continuavam no fundo do saco. Agora, Haze já não lia livro nenhum, mas guardava ainda a Bíblia porque a tinha trazido de casa”. E ao chegar a Eastrod, a terra natal no Tennessee, descobre a sua família e a casa em ruínas. “A casa estava escura como a noite e aberta ao negrume, e apesar de ele ter reparado que a vedação em volta estava meio caída e que ervas daninhas cresciam por todo o chão do alpendre, não percebeu de imediato que a casa era apenas uma concha vazia, que não havia ali nada para além do esqueleto duma casa”. Daqui parte todo o enredo, uma vez que, em lugar de um lar e de uma família que o possam acolher só descobre o negrume e o vazio. Flannery O’Connor volta, assim, ao tema da Graça divina que se manifesta muitas vezes através da imperfeição e até da mentira, e neste romance a teia que vai ser urdida baseia-se nessa mesma ideia.
IRONIA E TRAGÉDIA
No prefácio à segunda edição, a escritora fala de um romance cómico, e apresenta-o assim, mas logo se percebe que o humor, fino e inteligente, apenas é usado para revelar o que de mais sério pode haver – “a integridade de uma pessoa”. A ironia e a tragédia vivem intimamente ligadas. E no caso desta trama, “a integridade de Hazel Motes reside na sua vigorosa tentativa de se livrar daquela figura maltrapilha que se move de árvore em árvore no fundo da sua mente”. A figura maltrapilha é Cristo e a integridade de Motes reside na incapacidade de se libertar dEle. E sendo o livre arbítrio uma escolha entre vários caminhos e a liberdade um mistério, que o romance procura aprofundar, o que verificamos é que, a partir da blasfémia e da heresia, vamos vendo desenhar-se a chama fraca e bruxuleante que, no fundo de si, Haze procura. Sem raízes, o anti-herói inicia uma batalha contra o fanatismo religioso da cidade onde se instala, Taulkinham, e em especial com referência a Asa Hawks, um pregador falsamente cego e a sua filha adolescente e sedutora. Mas, para denunciar o que considera ser mentira e hipocrisia, propõe-se fugir de Jesus, e funda a sua própria religião “a Igreja Sem Cristo” – onde os cegos não vêem, os coxos não andam e o que está morto, morto fica. Para encontrar o calor de um lar, começa por ir ao encontro de Leora Watts, dona da “cama mais quente da cidade”, uma prostituta que lhe diz: “Aqui a mamã nã se rala que nã sejas pregador”. Afinal, ele começa por ter muita dificuldade em não ser identificado com um pregador, pois a indumentária e o chapéu negro não oferecem dúvidas a quem o encontra, por muito que se queira libertar dessa marca. Então conhece Enoch Emery, um jovem de 18 anos, vendedor e empregado no município, que julga ter herdado o “sangue sábio”, a intuição espiritual, de seu pai, e que procura um novo jesus, que julga encontrar numa múmia encarquilhada, que rouba do Museu da cidade para oferecer a Haze. Motes adquire um velho automóvel, um Essex, imponente mas degradado, por 40 dólares e 20 litros de gasolina, mesmo sem possuir carta de condução, e confessa ao vendedor: “Eu queria este carro mais pra ser uma casa pra mim. (…) Nã tenho nenhum sítio onde ficar”. E troca o seu equívoco chapéu preto por um vistoso panamá branco de abas largas.
ESCREVER DIREITO POR LINHAS TORTAS
A narrativa desenha o ambiente. O fanatismo religioso mistura-se com o conformismo, a corrupção e a dúvida. Motes é atraído pela filha de Hawks, Sabbath, e ao procurar fugir de Jesus é apanhado numa armadilha. “Se vocês tivessem sido redimidos, bradava Hazel Motes, “iam preocupar-se com a redenção. Mas ninguém quer saber. Olhem para dentro de vocês e vejam lá se não preferiam não ter sido redimidos, se tivessem sido redimidos”. O pregador pretendia uma igreja em paz e satisfeita, mas eis que surgem inesperados seguidores, Onnie Jay Holy, aliás Hoover Shoats, que fala da “Santa Igreja de Cristo sem Cristo” e procura fazer negócio com a angariação de novos fiéis e um suposto profeta, Solace Layfield. Perante a armadilha e o feitiço que se vira contra o feiticeiro, Haze faz justiça pelas suas mãos, persegue, derruba e mata Layfield – por não suportar um homem que não fala verdade e que troça de quem fala. E confessa, pouco depois, ter dúvidas sobre se a blasfémia pode ser o caminho da salvação, por ser preciso acreditar nalguma coisa para blasfemar… Haze, que se deixara seduzir por Sabbath, que recusara a múmia de Enoch, que matara Layfield, é apanhado na estrada sem carta por uma brigada da polícia que faz despenhar o Essex por uma ribanceira. E decide pôr cal nos olhos, para cegar verdadeiramente… A partir daí, vivendo na escuridão, “ele passava grande parte das tardes sentado no alpendre de casa”, só falava “quando lhe convinha”, e pagava a renda com o dinheiro que recebia da pensão de guerra. Já não podia pregar mais. Depois, a dona da casa, senhora Flood, descobriu que ele caminhava com dificuldade e foi dar no fundo dos sapatos com gravilha, vidro partido e pedrinhas aguçadas. “Pra qu’ê que você anda com pedras nos sapatos?”. A resposta foi apenas. “Para pagar” – sem mais explicações… “Você deve mesmo acreditar em Jesus, senão não fazia essas parvoíces”. Mas ele não queria mais conversas. Entretanto, apanhou gripe e foi ficando cada vez mais fraco, a ponto de sair pouco de casa. Num dia de chuva e vento, subitamente, saiu sem destino certo e contra o conselho insistente da senhora Flood. No dia seguinte, assim que raiou a aurora, ela foi procurá-lo. Ninguém o tinha visto. Chamou a polícia, mas não o encontraram. Foi preciso passarem dois dias, e dois jovens polícias descobriram-no, deitado num rego de escoamento. Ainda dava sinais de vida: “Quero continuar a ir pra onde ‘tou a ir”. Haze morreu pouco depois no carro patrulha, mas os polícias não deram por isso e levaram-no para casa da senhoria. A cena final é o coroar de todo o mistério que envolve a trama. O cego antecipara a morte, que agora chegava, incerta e incompreensível: E então vemo-lo “afastando-se, cada vez mais longe, afastando-se mais e mais, dissipando-se na escuridão até ser ele o minúsculo ponto de luz”.
Guilherme d’Oliveira Martins