A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de Março de 2008.
Joel Serrão (1919-2008) acaba de nos deixar, mas a sua acção perdurará, influente e renovadora. Por isso, escolhemos para invocar a sua memória, a recordação de um pequeno livro, bem demonstrativo da importância do historiador e do pedagogo – referimo-nos a “Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal” (Livros Horizonte, 1969). Numa obra vasta e multifacetada, de quem foi essencialmente um cidadão, um professor e um mestre de várias gerações, sempre disponível para abrir novos caminhos, com rigor crítico, Joel Serrão interessou-se pelo século XIX, pela história política, mas também pela poesia, e por isso, ao lermo-lo, podemos entender a história como ciência e vida, o que nos permite compreender melhor de onde vimos e quem somos.
“A Geração de Setenta”, por João Abel Manta
UM ANTIGO ENIGMA
Foi Oliveira Martins quem disse do “sebastianismo” que era “uma prova póstuma da nacionalidade”, e o certo é que, como reminiscência messiânica, tem constituído uma recorrência da nossa identidade e do nosso imaginário histórico – um antigo e persistente enigma, a que sempre temos dificuldade de responder. E se virmos bem, o cerne das intervenções das gerações renovadoras e dos movimentos reformistas e revolucionários teve a ver, directa e indirectamente, com esse estranho fenómeno, com que esbarramos a cada passo, que anima muitas das interrogações que fazemos sobre o presente e o futuro de Portugal. Já António Sérgio, falando de uma “interpretação não romântica do sebastianismo”, preferiu analisar este como algo de natureza social e intelectual, com ligações ao judaísmo, aos cristãos-novos e ao desastre de 1580: “o messianismo terá vida (ou poderá tê-la) enquanto se impuser a este povo, para comparar e contrapor à sua efémera grandeza, o espectáculo persistente da sua lúgubre decadência”. João Lúcio de Azevedo, por seu lado, referiu o sebastianismo como “nascido da dor, nutrindo-se da esperança”, sendo “na história o que é na poesia a saudade”, ou seja, “uma feição inseparável da alma portuguesa”. E se dúvidas houvesse, bastaria ler a poesia de António Nobre, de Teixeira de Pascoaes e de Fernando Pessoa para compreender como o sebastianismo é uma referência poética e culturalmente relevante. E foi por isso que Joel Serrão, no final dos anos sessenta, num momento em que se anunciavam mudanças inexoráveis no sentido da abertura e da democracia (no ano da morte de António Sérgio), se interrogou sobre o tema, não a partir de considerações abstractas, mas como um entendimento de vontade e de esperança, para contrariar a decadência.
AS “TROVAS” DO BANDARRA
Muito antes do sebastianismo, de 1530 a 1540, Gonçalo Anes, o sapateiro de Trancoso, deu-se a profetizar, ao modo do Antigo Testamento, como sinal de revolta circunstancial, um tempo que “fará paz em todo o mundo”. A Inquisição logo proibiu as “Trovas”, por serem perigosas e judaizantes, mas o povo depressa encontraria razões para as adoptar, já não por descontentamentos locais (como inicialmente), mas por fundas razões de sobrevivência. E, argutamente, Joel Serrão põe a hipótese mais verosímil: “perguntamo-nos (…) se, no contexto social da época, a promoção do sebastianismo, crença de raiz popular, não foi, ao menos parcialmente, uma tentativa de índole política destinada a dinamizar a comparticipação do povo nos objectivos da Restauração” (p. 18). O Padre António Vieira aproveitou claramente o filão e, com o seu carisma, procurou abrir um campo de apoio para D. João IV e para um novo projecto nacional. E, com o andar dos tempos, o mito foi alimentado e contrariado, a ponto de, ainda em 1813, ter sido preso e internado num manicómio o “último sebastianista”, já depois de morto Pombal e dos primeiros ecos liberais…
O FIM DO MITO
O sebastianismo popular desapareceu com o dealbar da contemporaneidade portuguesa, no liberalismo. Mas Garrett foi o primeiro a lembrar a importância da recordação, ao criar a personagem do fiel criado Telmo Pais (que ele próprio representou no palco), incarnando o mito sebástico. Um rei menino estará para vir? Eis que o teatro e a poesia retomam o sebastianismo, na linha da heresia medieval dos joaquimitas e do franciscanismo espiritual (da idade do Espírito Santo), mas também segundo o profetismo judaico e dos cristãos-novos. E até o lusitanismo republicano da “Renascença Portuguesa” se fez eco dessa mitologia, ligada à saudade e a um modernismo ancorado na memória histórica, de que Fernando Pessoa foi marco miliário.
QUE RAÍZES HISTÓRICAS?
Procurando ir às razões, somos forçados a cair na conferência de Antero de Quental no Casino Lisbonense, sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Como disse Braudel, a segunda metade do século XVI peninsular caracterizou-se pela implantação de uma estrutura social ferreamente aristocrática (75% da população detinha 5% por cento do solo), assente na posse da terra, modo de resistir à loucura dos preços. O obscurantismo prevaleceu, as relações de injustiça ou de “desespero de viver” (Braudel) multiplicaram-se, e o sebastianismo poderia muito bem ter sido um sinal de revolta, até porque historicamente as “Trovas” do Bandarra surgiram de um antigo motim verdadeiro. Por outro lado, “como demonstrou Jaime Cortesão, as energias nacionais, que condicionaram e possibilitaram a Restauração, principiam no Brasil e no seu incremento: sem o açúcar brasileiro não teria havido 1640. E sem ele, aventamos nós (J.S.), a mente de António Vieira não teria sido empolgada pela miragem do Quinto Império” (p. 31). E Joel Serrão pergunta-se sobre o porquê do enfraquecimento do sebastianismo a partir do fim do antigo regime, sobre as razões da persistência literária do tema por parte de poetas sem público (como Pessoa, inédito à data da sua morte) e sobre um certo regresso da questão no final do século passado. Daí a orientação política e cultural do ensaio: desde o arranque e desenvolvimento da experiência liberal ao socialismo e anarquismo, passando pelo “projecto regenerador republicano”.
UM PERCURSO DE EMANCIPAÇÃO
1808 foi o ano charneira na tomada de consciência liberal – a ida da corte para o Brasil, a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional (em especial à Inglaterra), o desmoronar do circuito fechado do comércio luso-brasileiro geraram descontentamento e a exigência de voz activa por parte da burguesia nascente. Havia que regenerar a pátria, humilhada pela invasão dos franceses e mais tarde desmembrada… A crise da agricultura e do comércio, a decadência manufactureira, a exaustão do Erário Régio, o peso das instituições arcaicas que limitavam a liberdade económica – tudo isso conduziu à Revolução de 1820 e à Guerra Civil, que culminou na vitória liberal de 1834. Havia que garantir o direito de propriedade individual e a liberdade do cidadão, “o câmbio do súbdito pelo cidadão, a substituição dos direitos magestáticos pela soberania nacional e o desterro do edicto pela lei”… A esse movimento geral de abertura chamou-se Regeneração, que é um sinónimo do restabelecimento do que estava destruído. Vintismo, reacção da emigração política, causa liberal de D. Pedro e de sua filha D. Maria da Glória, setembrismo, “Regeneração” propriamente dita, Vida Nova e republicanismo sucederam-se em nome da emancipação social e política. Garrett, Herculano, Antero e a Geração de Setenta, a “Águia”, o “Orpheu”, a “Seara Nova” foram os protagonistas pessoais de uma “estimulante tentativa de actualização europeia, de abertura a novos caminhos de acção” (p. 61). O liberalismo abriu, afinal, caminho ao republicanismo, a partir dos anseios de emancipação e de autonomia. Sampaio Bruno alertava, aliás, para que o problema fundamental não deveria ser iludido: “porque a educação dum povo faz-se conferindo os direitos públicos a esse mesmo povo. Ele aprende usando, e só assim”. E como diria Perroux: “De duas uma: ou a história se impõe à pessoa de modo inelutável, ou a pessoa emerge da história e contribui para a sua efectivação”… A conciliação entre igualdade e liberdade tornou-se necessária, como pretenderam Antero e os seus. E foi a vontade que passou a entretecer a esperança.
E oiça aqui as minhas crónicas da Renascença
Guilherme d’Oliveira Martins